O promotor de justiça frente à institucionalização de criança e adolescente em entidade de abrigo e destituição do poder familiar

O promotor de justiça frente à institucionalização de criança e adolescente em entidade de abrigo e destituição do poder familiar

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O PROMOTOR DE JUSTIÇA FRENTE À
INSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇA E ADOLESCENTE EM ENTIDADE
DE ABRIGO E A DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR
Luiz Antonio Miguel Ferreira1

  1. INTRODUÇÃO.
    Um dos problemas que atingem o Promotor de Justiça que atua na área da
    Infância e da Juventude consiste em saber qual o momento ideal ou propício para
    ingressar com a ação de destituição do poder familiar, envolvendo uma criança ou o
    adolescente que se encontra abrigado em instituição.
    Ciente de que constitui direito fundamental da criança e do adolescente a
    convivência familiar e que esta ocorre no seio da sua família natural e,
    excepcionalmente, em família substituta, na modalidade de guarda, tutela ou adoção,
    constata-se que a institucionalização de criança e adolescente em entidade de abrigo
    constitui-se medida excepcional e transitória, que requer solução rápida e efetiva.
    A solução para essa institucionalização está em: a) buscar condições para o
    retorno da criança ou do adolescente para sua própria família ou a família estendida,
    assim compreendida os parentes próximos, dispostos a assumir os seus cuidados, e que
    mantenha, com eles, relação de afinidade e afetividade; b) ingressar com a destituição
    do poder familiar, para garantir a colocação da criança em família substituta, de
    preferência na modalidade de adoção.

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Promotor de Justiça da Infância e da Juventude do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Especialista em direito difuso e coletivo. Mestre em educação. Home page: www.pjpp.sp.gov.br – Email: lamfer@stetnet.com.br – dez./2004.
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Porém, saber o momento exato para buscar uma ou outra solução para o caso é o
problema que se apresenta. A análise das causas da institucionalização da criança ou do
adolescente pode ajudar a encontrar uma alternativa para a questão.

  1. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE.
    A colocação de criança ou adolescente em entidade de abrigo apresenta-se, no
    Estatuto da Criança e do Adolescente, como medida de proteção (Art. 101,VII) e deve
    ocorrer quando se verificar uma situação de risco social ou pessoal, definida na lei em
    razão da: a) ação ou omissão da sociedade ou do Estado; b) por falta, omissão ou abuso
    dos pais ou responsável; e c) em razão da conduta da criança ou do adolescente.
    Centrando a análise no abrigamento da criança e do adolescente,
    especificamente em relação aos pais, constata-se que esta ocorre em face de três
    situações definidas: falta dos pais, que se caracteriza pela ausência física deles, como,
    por exemplo, em razão de falecimento ou de desaparecimento, sendo que, nesse caso,
    não exercem a guarda do filho; em razão da omissão dos pais, que se traduz em
    negligência e, também, na falta de recursos pessoais ou materiais para manter o filho
    sob a guarda; por fim, quando os pais abusam dos atributos inerentes ao poder familiar,
    manifestando-se na forma de violência física, psicológica ou sexual2
    .
    Extraem-se destes fundamentos do abrigamento em relação aos pais, causas de
    natureza social e pessoal. As de natureza social, como a omissão em face da ausência
    de recursos, são sanáveis por meio de políticas públicas voltadas para a criança,
    adolescente e a família, como, por exemplo, programas como renda mínima, bolsa
    escola ou aqueles voltados à orientação familiar (programa de proteção à família, apoio
    psicológico e psicoterápico). Muitas dessas ações estão previstas no Estatuto da Criança
    e do Adolescente, quando aborda as medidas pertinentes aos pais (art. 129). Com uma
    política pública efetiva, muitas crianças ou adolescentes podem ser desabrigados das
    instituições, voltando ao convívio familiar.
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    Agora, as causas de abrigamento de natureza pessoal, assim designadas àquelas
    referentes aos pais que praticam violência física, psicológica ou sexual, o problema é
    mais sério, pois não se resolve apenas com políticas públicas. Estas podem ajudar a
    enfrentar a questão, como o tratamento psicológico dos pais que praticam esse tipo de
    violência com os filhos. Porém, em determinadas situações, o retorno da criança ou do
    adolescente à casa do agressor apresenta-se inviável, em razão do risco da
    revitimização, havendo a necessidade de uma outra solução para o caso, que envolve a
    sua colocação em família substituta.
    Do exposto, conclui-se que a solução para a questão da criança ou do
    adolescente abrigado está assentada em ações do Poder Executivo referente às políticas
    públicas, quando as causas do abrigamento decorram de ações de natureza pessoal dos
    genitores, bem como em ações do Poder Judiciário, quanto à definição da situação da
    criança ou do adolescente abrigado, para viabilizar a sua colocação em família
    substituta, vale dizer, numa definição em relação à destituição do poder familiar,
    quando as causas são de natureza pessoal.
    Essas ações passam pelo Ministério Público que se apresenta como a Instituição
    legitimada para acionar o Executivo, quanto à consecução das políticas públicas, e o
    Poder Judiciário, nas ações referentes à colocação em família substituta.
  2. A DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR.
    Quando o Promotor de Justiça depara-se com a situação que envolve a
    institucionalização da criança ou do adolescente, em face de fatores sociais e pessoais
    relacionados aos genitores, deve buscar uma solução que melhor atenda aos interesses
    dos abrigados, qual seja, uma definição de sua situação, para viabilizar o retorno da
    criança ao convívio familiar (se for o caso) ou a sua colocação em família substituta.
    Em relação às causas sociais, a destituição do poder familiar não se apresenta
    como a primeira alternativa a ser tomada pelo Promotor de Justiça, que deve engendrar

2 Atualmente, define-se esse abuso físico, psicológico ou sexual como violência doméstica, que engloba o
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ações junto ao poder público para garantir uma maior assistência aos pais, dotando-os
de condições para receberem, novamente, o filho abrigado. Essas ações também podem
direcionar-se ao Poder Judiciário, em especial à Vara da Infância e da Juventude, para
aplicar as medidas previstas no artigo 129 do ECA. Essas ações devem garantir, aos
pais, o dever de sustento, guarda e educação dos filhos, além do cumprimento das
determinações judiciais (ECA., art. 22).
Porém, quanto às causas de natureza pessoal, em que o retorno da criança à
familiar origem é mais difícil, mister se faz o desenvolvimento de ações para a sua
colocação em família substituta, de preferência na modalidade de adoção. Nesse caso, a
ação de destituição do poder familiar apresenta-se como alternativa válida para a
garantia da convivência familiar da criança institucionalizada. Essa medida é
indispensável porque a outra alternativa que se apresenta, ou seja, a de deixar a criança
ou o adolescente na entidade, até completar a maioridade, não se mostra adequada em
razão das conseqüências advindas da institucionalização prolongada como a “perda da
individualidade, carência de estímulo para o desenvolvimento, ausência de vínculos
afetivos duradouros; falta das figuras paternas e maternas na formação psicológica”, etc.
(CARVALHO, Parecer n. 193/04-J).
Tanto na hipótese de causa social como na de natureza pessoal, o momento
adequado para se ingressar com a ação de destituição do poder familiar resulta do
confronto de dois direitos básicos: a) a dos pais em ter os filhos em sua guarda e
companhia e b) o direito dos filhos à convivência familiar em ambiente adequado (art.
29 do ECA). Este último direito deve prevalecer em relação aos pais, posto que a ele foi
garantida a prioridade absoluta. Desta forma, não há prazo certo e determinado na Lei
para se ingressar com a ação judicial de destituição do poder familiar.
Nas causas de natureza social, deve-se dar oportunidade aos pais para se
reorganizarem no sentido de restabelecer a guarda do filho abrigado. No entanto, esta
oportunidade não pode alongar-se indefinidamente, para não prejudicar os vínculos
afetivos com o filho institucionalizado. É conveniente estabelecer um prazo certo (v.g. 6

maus tratos.
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meses) para um acompanhamento efetivo com os genitores, no sentido de verificar uma
mudança no estilo de vida para garantir o retorno do filho. Esgotado o prazo, ingressarse-ia com a medida judicial.
Em relação às causas de natureza pessoal, a propositura da ação de destituição
do poder familiar apresenta-se de maneira mais simples, posto que, dependendo da
violência praticada pelos genitores, o seu ingresso na esfera judicial não deve aguardar
nenhuma outra providência ou prazo previamente estipulado. Uma criança vítima de
violência sexual por parte dos pais, via de regra, não deve retornar ao seu convívio. A
destituição do poder familiar é de rigor.
Vale registrar, a respeito do tema, as seguintes considerações:
a) A destituição do poder familiar independe da prévia colocação da criança ou
do adolescente em família substituta. Pode-se ingressar com a referida ação e, após
definida a situação da criança ou do adolescente, colocá-lo sob guarda, tutela ou adoção,
mesmo porque, nas duas últimas modalidades, há necessidade da prévia decretação da
perda (e no caso da tutela, pode ocorrer a suspensão) do poder familiar. Por outro lado,
a destituição do poder familiar facilita a colocação da criança em adoção.
b) A destituição do poder familiar não impede que os pais destituídos, no futuro,
venham a requerer a restituição do poder familiar, uma vez cessado o problema que deu
causa à ação e desde que a criança não esteja sob adoção. Quanto a esta questão, vale
registrar que “nem toda forma de perda do pátrio poder acarreta sua extinção. Somente
aquelas definitivas, com, v.g., decorrentes do casamento, da morte, da colação de grau
ou da adoção. Daí decorre a conclusão de que a extinção sequer exige declaração
judicial, operando-se no momento em que incide a causa” (JTJ 233/105). Assim, nas
hipóteses em que a destituição do poder familiar configura apenas cessação do direito,
pode ocorrer a sua retomada.3

3 A respeito do assunto, vale conferir o ensinamento de Roberto João Elias no livro Pátrio Poder –
Guarda dos filhos e direito de visitas. São Paulo: Saraiva, 199, p. 101-104 e de José Luiz Mônaco no
artigo Ação de Restituição do Pátrio Poder disponível na internet no site: www.mp.sp.gov.br – Centro de
Apoio da Infância e da Juventude.
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c) o direito dos pais em ter os filhos em sua guarda e companhia não é absoluto e
resulta do correto exercício do poder familiar.
d) a condição econômica dos pais não pode ser o fator determinante da perda ou
suspensão do poder familiar (ECA., 23).

  1. O MINISTÉRIO PÚBLICO FRENTE À DESTITUIÇÃO DO
    PODER FAMILIAR.
    O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao traçar o rito processual para o
    processo de suspensão e perda do pátrio poder, estabeleceu no artigo 155, a questão da
    legitimidade ativa, prevendo:
    Art. 155. O procedimento para a perda ou suspensão do pátrio
    poder terá início por provocação do Ministério Público ou de quem
    tenha legítimo interesse.
    A redação do citado artigo é clara ao garantir, ao Ministério Público,
    legitimidade processual para ingressar com o pedido de perda ou suspensão do poder
    familiar. O problema que se apresenta revela-se quando o Promotor de Justiça não atua
    no cumprimento de seu dever funcional, já que garantir o direito à convivência familiar
    (na família natural ou substituta) é uma de suas obrigações (ECA., art. 201,VIII). Como
    a lei não estabeleceu prazo certo e determinado para se ingressar com a referida ação
    judicial, decorre, de tal situação, que a atuação do Promotor de Justiça fica condicionada
    à análise da conveniência e oportunidade do confronto dos direitos básicos já
    mencionados: a) a dos pais em ter os filhos em sua guarda e companhia e b) o direito
    dos filhos à convivência familiar em ambiente adequado (art. 29 do ECA).
    Se entender que não seja o caso de se ingressar com a ação judicial em questão,
    em razão de sua independência funcional, resta aos demais legitimados propô-la. Neste
    caso, quem são os demais legitimados, ou, como diz a lei, quem tem “legítimo
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    interesse”, para postular em juízo a destituição ou suspensão do poder familiar. A
    respeito do assunto, esclarece Melo Júnior (1998, pág. 68):
    A lei não indica, outrossim, com a necessária precisão, quais
    seriam as pessoas legitimadas para a ação. Interesse legítimo, expressão
    usada pelo Código de Processo Civil de 1939, e que está contida no
    artigo 76 do Código Civil, sofreu inúmeras críticas por parte dos
    doutrinadores, face à sua imperfeição técnica.
    Como dizia Pontes de Miranda, “atribuir ao adjetivo “legitimo”
    o sentido de permitido por lei, seria traçar duas linhas divisórias: uma,
    entre interesses e não–interesses; outra, entre interesses legítimos e
    ilegítimos, que seriam os interesses suscetíveis de proteção; os interesses
    do que tem razão e os interesses do que não tem razão, dos quais só
    aqueles seriam os legítimos. A única solução é lermos o adjetivo
    “legitimo” como se estivesse em vez de “jurídico”, de modo que dentro
    dessa forma contenham interesses econômicos, morais ou misto. Ou não
    o ler.
    Podem-se identificar como legítimos interessados para ingressarem com o
    pedido de perda e suspensão do poder familiar aqueles que buscam regularizar a
    situação de uma criança por meio da tutela ou da adoção.
    O Conselho Tutelar não tem legitimidade para ingressar com a ação, mas tem a
    obrigação de representar ao Ministério Público para a iniciativa da medida (art. 136, XI
    do ECA).
    Também se apresentam como legítimos interessados para a ação os ascendentes,
    colaterais ou parentes por afinidade do menor.
    Ao guardião, conforme estabelece o artigo 33 do Estatuto da Criança e do
    Adolescente, confere-se o direito de opor-se a terceiros, aos pais inclusive. Assim,
    visando à segurança e ao desenvolvimento do menor, pode o guardião ingressar com o
    pedido de suspensão ou destituição do poder familiar em relação aos pais. Decorre dessa
    interpretação que o dirigente de entidade de abrigo, por ser equiparado ao guardião para
    todos os efeitos de direito (art. 92, parágrafo único do ECA), também possua
    legitimidade para ingressar com a mesma ação judicial.
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    O Magistrado não pode agir de ofício e destituir os pais do poder familiar, não
    possuindo legitimidade para dar início ao referido processo, nem em caráter
    administrativo (RT 728/219 e 671/80). No entanto, resta evidente o seu interesse na
    hipótese de se confrontar com situação que justifica a destituição do poder familiar.
    Nessa situação, constatando a necessidade da destituição, pode encaminhar peças do
    processo à Promotoria de Justiça para as providências cabíveis, ou nomear curador
    especial para a defesa dos interesses do menor, no caso de inércia do Ministério Público.
    Nesta última hipótese, a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo reconhece a
    legitimidade da criança e do adolescente para postular, em Juízo, a destituição do seu
    genitor (JTJESP 193/152).
    O pai ou a mãe também pode ingressar com ação de destituição do pátrio poder,
    um contra o outro, para resguardar os interesses dos filhos.
  2. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
    O poder familiar tem natureza nitidamente protetora, visando a assegurar o pleno
    e normal desenvolvimento do filho menor.
    Os pais devem obedecer ao princípio da paternidade responsável, com o objetivo
    de garantir o efetivo desenvolvimento da prole (CF., art. 226, § 7º). Essa paternidade
    responsável implica o cumprimento das obrigações estabelecidas no artigo 229 da
    Constituição Federal, ou seja, o direito de assistir, criar e educar os filhos. Segundo
    esclarece SÊDA (1993, pág. 30):
    Assistir é promover as condições materiais para a proteção dos
    filhos: dar segurança, alimentação, vestuário, higiene, convivência, etc.
    Criar é promover as adequadas condições biológicas, psicológicas e
    sociais que garantam o peculiar desenvolvimento que caracteriza a
    criança e o adolescente. Educar é desenvolver hábitos, usos, costumes
    tais que integrem os filhos na cultura de sua comunidade, através de
    padrões éticos aptos para o exercício da cidadania.
    Caso não cumpram com tal papel, sofrerão as medidas legais, com a perda ou
    suspensão do poder familiar inclusive, posto que é garantido à criança e ao adolescente,
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    com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar em ambiente adequado, não
    podendo ficar institucionalizados em entidades de abrigo.
    Na defesa de tal direito apresenta-se o Promotor de Justiça com especial
    destaque, já que a lei lhe conferiu legitimidade para agir na defesa dos direitos das
    crianças e dos adolescentes. A propositura da ação judicial de destituição do poder
    familiar é uma das medidas cabíveis para garantir tal direito.
  3. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.
    CARVALHO, Reinaldo Cintra Torres. Parecer n. 193/04-J. Corregedoria Geral de
    Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Diário Oficial de 14/04/04.
    Caderno 1, Parte 1.
    SÊDA, Edson. Construir o passado. São Paulo: Malheiros, 1993.
    MELLO JÚNIOR, Samuel Alves de. Considerações sobre a inibição do pátrio poder,
    colocação em família substituta e competência no Estatuto da Criança e do
    Adolescente. In: Infância e Cidadania 1. Carlos Eduardo Pachi (et.al.). São Paulo:
    Scrinium, 1998.