A GERAÇÃO COVID

A GERAÇÃO COVID

Luiz Antonio Miguel Ferreira1

Luiz Gustavo Fabris Ferreira2

 

É de conhecimento de todos as consequências que a pandemia de COVID-19 proporcionou no mundo, em especial em nosso país. Já se foram mais de 600 mil mortos pela doença. Porém, o que chega a ser mais preocupante é que estas mortes carregam a marca da desigualdade, posto que a camada mais pobre foi afetada de maneira significativa. E, neste particular, as crianças se tornaram vítimas exponenciais.

No mês em que se comemora o dia da criança, parece que não há muito o que festejar em face do rastro deixado pela pandemia nesta parcela da comunidade. As consequências foram sentidas em vários setores, como na convivência familiar, área da educação, saúde, assistência social, entre outros.

Por exemplo, no campo educacional, as crianças experimentaram uma negligência ímpar, diante do negacionismo da ciência, sendo o país que ficou por mais tempo com as escolas fechadas. Os prejuízos são enormes. Em recente estudo sobre o impacto da pandemia de COVID-19 no aprendizado e bem-estar das crianças, elaborado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, foi constatado, de uma amostra de 21 escolas e 671 crianças, no Pré-II, um ritmo de aprendizagem mais lento em matemática e linguagem equivalente a 4 meses de diferença entre o ano de 2019 e 2020, sendo a camada mais pobre a que apresentou uma desigualdade ainda maior. O mesmo estudo ainda apontou uma queda da aptidão física e habilidade motora, além de um comprometimento com a saúde mental e rotina das crianças.

Neste momento, segundo o referido estudo, o recomendável é estabelecer programas individuais de aprendizagem, com a realização de busca ativa, acolhimento e diagnóstico individual do desenvolvimento das crianças. Muito terá que ser feito para restabelecer o que foi perdido durante a pandemia.

Mas o que chama a atenção, diante deste quadro pandêmico, refere-se ao número de mortes e, consequentemente, o que isso representa para as crianças.

Segundo estimativas realizadas para o Brasil, 113.150 crianças perderam a mãe, pai ou ambos e 17.213 perderam avó, avô ou ambos. No mundo, cerca de 1,13 milhão de crianças perderam um dos pais ou avós cuidadores (The Lancet 2021, 398: 391-402)3. De forma mais específica, esclarece Márcia Castro, professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População na Faculdade de Saúde Pública de Harvard que “cerca de 2 em cada 1000 crianças ficaram órfãs durante a pandemia. A orfandade paterna é 3,4 vezes maior que a materna e isso gera uma ruptura no cuidado com a criança”.

É sabido que a morte provocada pela COVID-19 afetou diretamente as pessoas maiores de idade, fato proporcionador de que o programa de vacinação contemplasse os mais idosos em primeiro lugar. Esta situação revelou uma face oculta da pandemia, posto que estas pessoas maiores de idade, em várias situações, eram pais, mães ou adulto cuidador de uma criança e isto torna mais drástico quando se leva em conta que a morte ocorre de maneira rápida, sem possibilitar uma adequada preparação quanto às situações dos filhos e nem mesmo o preparo do luto. Em função disso, as consequências são sérias e profundas. As crianças, neste contexto, sofrem o trauma da perda dos pais ou responsável, o que gera consequências em sua saúde mental e no seu desenvolvimento psicomotor.

A síntese desta situação é, portanto, a face oculta da pandemia, pois, se na estatística de morte, é a pessoa maior que faleceu e foi contabilizada (pai, mãe ou adulto cuidador), invariavelmente, foi a criança que sofreu as maiores consequências. Elas representam e sofrem os efeitos diretos destas mortes e ficarão marcadas como uma geração legada pela COVID-19.

No campo psicológico, a perda de um parente próximo representa uma dor profunda, com reações de ansiedade e estresse, com a possibilidade de apresentar sintomas psicopatológicos futuros, como regredir comportamentalmente e ter sensação de desamparo, com o agravante de não se poder realizar um velório ou enterro com a participação da família, tornando o luto mais doloroso.

A questão que se apresenta agora é como mitigar os efeitos dessas mortes para milhares de crianças órfãs. As soluções pertinentes referem-se à reorganização familiar (quando um irmão mais velho a assume e passa a ter a guarda de fato), a colocação em família substituta (a guarda, tutela ou adoção) também é uma saída, mas apresenta as dificuldades decorrentes desta mudança que é drástica e necessita de ser rápida.

Ainda, como forma de enfrentar este problema, pode-se contar com o acolhimento institucional da criança, medida que apresenta graves consequências e que deve ser transitória e de curta duração, caso seja impossível de evitá-la. Na pior das hipóteses, ainda teremos que conviver com grupos de crianças marginalizadas, sem ter quem os assumam ou orientem e que, muitas vezes, ficarão vagando pelas ruas.

A disponibilização de tratamento psicológico também é um recurso a ser utilizado para minimizar os problemas decorrentes da perda. Nesse sentido, informa Beatriz Schimidt et al:

“Assim, sopesando que a morte de uma figura parental se constitui como experiência profundamente estressante na infância ou na adolescência, aumentando o risco de desenvolvimento de problemas de saúde de ordem mental ou física a qualquer tempo na trajetória de vida (Luecken & Roubinov, 2012), considera-se importante que crianças e adolescentes sejam incluídos nas intervenções psicológicas que envolvam processos de terminalidade e morte, posto que são capazes de entender e de participar do processo de luto familiar, sobretudo se tiverem o apoio do genitor sobrevivente (Bowlby, 1998; Walsh & McGoldrick, 1998), bem como de outros membros significativos de sua rede social de apoio”4.

Benefícios assistenciais mostram-se pertinentes, pois a colocação de uma criança em um novo lar apresenta, na maioria das vezes, dificuldades de ordem econômica, já que estamos lidando com uma população carente. Quando não, a perda de um dos pais que representava a fonte de renda da casa vai proporcionar um desequilíbrio no orçamento familiar.

O certo é que este rearranjo do grupo familiar repercute, também, em outras esferas, como na Educação. Em primeiro lugar, diante da mudança de escola que a criança frequentava. Mas a consequência maior decorre da recuperação do estrago causado pela suspensão das aulas presenciais e da ausência de condições tecnológicas de muitas crianças em acompanhar as atividades educacionais de forma remota e tudo isso somado à questão de ter pedido um pai ou uma mãe.

Estas crianças, muitas vezes, ocultas das estatísticas oficiais ou invisibilizada pela sociedade, precisam de uma atenção especial da sociedade e do Estado, para minimizar as sequelas físicas, emocionais e sociais decorrentes da pandemia de Covid-19. A pandemia vai acabar um dia ou será controlada de forma a minimizar mortes. Porém, a orfandade e as consequências deixadas por ela subsistirá por muito tempo.

 

1 Advogado e consultor. Promotor de Justiça aposentado do Estado de São Paulo. Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Membro do Conselho Consultivo da Fundação Abrinq e Sócio Efetivo do Todos pela Educação. Sócio do Instituto Fabris Ferreira.

2 Advogado. Sócio do Escritório Luiz Antonio Miguel Ferreira Advogados e do Instituto Fabris Ferreira. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo Coletivo da USP.

3 Estes dados já estão desatualizados para o Brasil em face do aumento do número de mortos, posto que o estudo é de março de 2020 a abril de 2021.

4 Terminalidade, morte e luto em famílias com crianças e adolescentes: possibilidades de intervenção psicológica. Beatriz Scimidt, Simone Dill Azeredo Bolze, Jadete Rodrigues Gonçalves e Letícia Macedo Gabarra. Universidade Federal de Santa Catarina