A criança: o esporte, o lazer e o brincar

A criança: o esporte, o lazer e o brincar

por:
Luiz Antonio Miguel Ferreira – Promotor de Justiça do Estado de São Paulo aposentado – Advogado e Consultor na área da infância e juventude, educação e pessoa com deficiência.

Paulo Roberto Fadigas César – Juiz da Infância e da Juventude na Cidade de São Paulo.

Artigo escrito em outubro de 2018.

01.
Com o advento da Constituição Federal, que neste ano completou 30 anos, várias leis se seguiram buscando regulamentar os direitos nela consignados, e em determinadas situações, para atender especificamente uma parcela da sociedade. Especificamente para estas camadas da sociedade, foram editadas as seguintes normas: Lei nº. 8.069/99 que tratou do Estatuto da Criança e do Adolescente; Lei nº. 10.741/2003 que dispõe sobre o Estatuto do Idoso; Lei nº. 12.852/2013 que instituiu o Estatuto da Juventude e a Lei nº. 13.146/2015 que se refere ao Estatuto da Pessoa com
Deficiência. Estas leis buscaram garantir os direitos consagrados na
Constituição Federal especificamente para: a criança, adolescente, idoso, juventude e pessoa com deficiência. E se observa destas legislações várias disposições em comum, sendo o caso de se destacar a questão relacionada ao DIREITO AO ESPORTE E LAZER. Mencionada legislação estabelece em relação ao tema: Estatuto da Criança e adolescente: No Capítulo IV, o estatuto especificou o Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte ao lazer. De maneira geral estabeleceu como regra básica:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, AO ESPORTE, AO LAZER, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Estatuto do Idoso: repetindo a normatização do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso tratou no capítulo V do direito à Educação, Cultura, Esporte e Lazer. E também, de maneira geral garantiu o direito ao lazer da pessoa idosa ao estabelecer:

Art. 3º. É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, AO ESPORTE, AO LAZER, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

Estatuto da Juventude: Tratou na Seção VIII do Direito ao Desporto e ao lazer (art. 28 a 30), ficando especificado a necessidade de oferta de equipamentos comunitários que permitam a prática desportiva, cultural e de lazer. Como regra geral, estabeleceu:

Art. 23. É assegurado aos jovens de até 29 (vinte e nove) anos pertencentes a famílias de baixa renda e aos estudantes, na forma do regulamento, o acesso a salas de cinema, cineclubes, teatros, espetáculos musicais e circenses, eventos educativos, ESPORTIVOS, DE LAZER e entretenimento, em todo o território nacional, promovidos por quaisquer entidades e realizados em estabelecimentos públicos ou particulares, mediante pagamento da metade do preço do ingresso cobrado do público em geral.

Estatuto da Pessoa com Deficiência: também dispõe de um capítulo específico que trata do direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer,
sendo que impõe como normativa:


Art. 8º. É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao DESPORTO, ao turismo, AO LAZER, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

02.
Segundo os léxicos, lazer ( latim licere, ou seja, “ser lícito”, “ser permitido”) “corresponde ao tempo de folga, de passatempo, de ócio, de descanso, distração ou entretenimento de uma pessoa”. Nesse sentido, o lazer pode-se caracterizar por uma ação ampla que inclui o brincar. E nesse aspecto que deve ser analisado quando se busca ponderar este conceito em relação a criança ou ao idoso.

Ambos têm direito ao lazer, mas o lazer para a criança pode envolver brincadeiras ou jogos, enquanto para o idoso pode contemplar outras ações que lhe garanta o prazer ou divertimento. O mesmo pode acontecer em relação ao jovem e à pessoa com deficiência. O esporte, por sua vez, “é toda a forma de praticar atividade física que, através de participação ocasional ou organizada, visa equilibrar a saúde ou melhorar a aptidão física e ou mental e proporcionar entretenimento aos participantes”.

Estas ações têm a ver com o efetivo desenvolvimento da pessoa humana e, em especial da criança. Tanto que Jacques Delors no livro “Educação um tesouro a descobrir” (6ª edição. São Paulo. Cortez: Brasília MEC Unesco 2001, pág. 98) discorre sobre os quatro pilares da educação e aponta o aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros como um destes pilares, afirmando:

Quando se trabalha em conjunto sobre projetos motivadores e fora do habitual, as diferenças e até os conflitos interindividuais tendem a reduzir-se, chegando a desaparecer em alguns casos. Uma nova forma de identificação nasce destes projetos que fazem com que se ultrapassem as rotinas individuais, que valorizam aquilo que é comum e não as diferenças. Graças à prática do DESPORTO, por exemplo, quantas tensões entre classes sociais ou nacionalidades se transformam, afinal, em solidariedade através da experiência e do prazer do esforço comum.

E continua:
A educação formal deve, pois, reservar tempo e ocasiões suficientes em seus programas para iniciar os jovens em projetos de cooperação, logo desde a infância, no campo das atividades desportivas e culturais…

03.
Pensando em dar efetividade a tais direitos disseminou-se em nossa sociedade algumas ações que buscam garantir o lazer e a prática esportiva. Para o idoso e a pessoa com deficiência constata-se que entre estas ações se destacam as denominadas academias da terceira idade e as academias adaptadas a pessoa com deficiência. São aparelhos colocados em praças ou parques para estimularem as atividades físicas e de lazer desta parcela da comunidade. Em relação ao adolescente e a juventude, constata-se uma
oferta ainda maior de equipamentos, principalmente no que diz respeito a campos de futebol, praças para a prática de skate e outras ações.
O problema centra-se em relação à criança. O que se oferece para a prática esportiva ou para o lazer das crianças? Quais os equipamentos de esporte e de lazer são oferecidos as crianças na comunidade? Como a criança brinca no espaço público? Onde estão as nossas crianças?

O senso comum não afere maior relevância para o brincar, conforme minucioso estudo realizada na obra “Primeiríssima infância da gestação aos
três anos: percepções e práticas da sociedade brasileira sobre a fase inicial da vida”
(Organizadores Eduardo Marino e Gabriela Aratangy Pluciennik). — São Paulo: Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, 2013. Em seu Capítulo 3, veicula pesquisa que indica que o “brincar” não foi valorizado pelos entrevistados, in verbis:

O brincar não foi valorizado pela população quando a pesquisa Primeira Infância explicitou o tema no leque de itens candidatos ao posto de mais importantes para o desenvolvimento da criança de zero a três anos. Somente 19% dos entrevistados citaram “brincar/passear” como um dos três itens mais importantes (figura 11). Quando a pesquisa se voltou a investigar as ações e atitudes que estimulam o desenvolvimento da criança pequena (figura 22), o brincar ficou diluído em modalidades (pág. 53).
Na mesma obra, os mesmos autores destacam, em contrapartida, o papel da televisão, “quando se constata que 55% desse mesmo grupo de mães de crianças de até um ano (Etapa 3 da pesquisa) elegeu a possibilidade de seu
filho bebê “assistir a desenho ou programas infantis na televisão” como a segunda principal ação adotada para estimular o desenvolvimento da criança. ”( pág. 52)

Ocorre que a televisão estimula de forma unilateral a mente infantil, o que, principalmente para crianças menores, é insuficiente. E a importância do brincar para crianças e adolescentes ultrapassa os limites do lúdico, influenciando diretamente o desenvolvimento das redes neurais. Professor Jack P. Shonkoff, da Escola de Saúde Pública de Harvard, em seu artigo Protecting Brains, Not Simply Stimulating Minds 3 e no hand-out 4 “The Science of Early Childhood Development Closing the Gap Between What We Know and What We Do” destaca a importância da realização de uma série de estímulos de “serve and return”, como ocorre nos jogos de vôlei, pinguepongue, etc., para que se formem as redes neurais, caso contrário, se perderão num processo conhecido como poda. Marta Román, também traça algumas considerações importantes a respeito deste assunto. Afirma que:
Apesar de serem tão valorizadas, o menor peso populacional das crianças contribuiu para reduzir sua visibilidade pública e sua capacidade de negociação com o mundo adulto. O desaparecimento das crianças nos espaços coletivos de uma forma livre e autônoma confinou-as ao lar ou a espaços delimitados especialmente preparados para seu cuidado. Desta forma, reduziu-se o atrito e a convivência intergeracional espontânea entre adultos e menores, como era habitual em épocas passadas ou em outras culturas. Assim, muitos adultos passam o dia inteiro sem cruzar ou interagir com uma única criança, e só aqueles que estão atualmente criando uma filha ou um filho ou as pessoas cuja atividade profissional está relacionada à atenção e cuidado às crianças terão esta convivência diária com menores de idade (Infância e mobilidade. Deparar-se com a realidade. Material disponibilizado no Curso de Liderança Executiva em Primeira
Infância). Em outros termos. Criticam-se o apego das crianças aos celulares e programas televisivos, mas não se oferecem espaço público de qualidade
para que possam brincar e praticar os seus esportes (por exemplo, o jogo da amarelinha, adoleta, caça ao tesouro, bola de gude, pega-pega, etc.).

3 O artigo foi publicado na Revista Science, vol. 333, em 19 de agosto de 2011.
https://developingchild.harvard.edu/wpcontent/uploads/2015/05/Science_Early_Childhood_Development.pdf (acessado em 22 de outubro de
2018)

Ficam confinadas dentro do lar (ou condomínio), fazendo ou tentando fazer o que antes era feito na rua, com a participação dos maiores. Vale destacar outro ensinamento de Marta Romám:
A privatização da criança foi acompanhada de um processo de inibição social. Os únicos atores que estão hoje legitimados para cuidar das crianças são seus familiares diretos e, de forma secundária, os profissionais da educação. Tudo que tenha a ver com os menores será atribuído a algum destes dois âmbitos – a casa ou a escola – sobre os quais recairá todo o peso e toda a responsabilidade por sua educação e cuidado”. O triunfo do privado sobre o coletivo, o triunfo da casa frente à rua, a ausência de infância e de atividades de lazer em ambientes externos, leva ao esvaziamento do espaço público, o que por sua vez dá lugar ao medo e à percepção de insegurança.

Como assevera Euclides Redin: a violação do direito de brincar pode ser compreendida como consequência da estruturação das sociedades modernas (O espaço e o tempo da criança: se der tempo a gente brinca. Porto Alegra, Mediação, n. 2003, pág. 55). No mesmo sentido aponta Suselaine A. Zaniolo Mascioli: o mundo moderno vem nos desapropriando das atividades lúdicas, trazendo intrinsicamente um caráter cada vez mais centrado nas ideias de trabalho, produção e seriedade, a ponto de nos sentirmos culpados quando temos um tempo livre ou destinado ao lazer e à diversão (Brincar – um direito da infância e uma responsabilidade da escola – In:. Educação Infantil – para que, para quem e por quê?
Maristela Angotti (organizadora) Campinas: Ed. Alinea, 2006, p. 107).

Interessante notar que, não obstante a relevância que se dá a criança em várias áreas da ciência, verifica-se a ausência do respaldo necessário na
família e sociedade para se garantir este direito básico de brincar, praticar esporte e o lazer.
Diante deste quadro, a Lei n. 13.257 de 08 de março de 2016 que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, ressalta a importância
deste direito ao estabelecer:

Art. 5º – Constituem áreas prioritárias para as políticas públicas para a primeira infância a saúde, a alimentação e a nutrição, a educação infantil, a convivência familiar e comunitária, a assistência social à família da criança, a cultura, O BRINCAR E O LAZER, o espaço e o meio ambiente, bem como a proteção contra toda forma de violência e de pressão consumista, a prevenção de acidentes e a adoção de medidas que evitem a exposição precoce à comunicação mercadológica.


Assim, torna-se necessária uma mudança significativa na família e sociedade para se garantir a criança este direito fundamental. Pensando em termos práticos, se há academia da terceira idade ou academia para a pessoa com deficiência, porque não a adaptar o espaço para a criança, pintando no chão o local para as suas atividades. Trata-se de uma forma de incluir o idoso com o neto ou a pessoa com deficiente com o filho. Integração e desenvolvimento e mais que isso, uma oportunidade de educar a criança no aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros, como afirma Jacques Delors, onde se estabeleça projeto de cooperação. O mesmo se diga em relação ao adolescente e ao jovem. Suas praças de atividades esportivas e de lazer deveriam contemplar a criança, uma vez que o adolescente pode ter um irmão que ainda é criança e o jovem, um filho.

Unem-se os espaços para o compartilhamento, para a convivência comum. O que não se pode admitir é a segregação que existe hoje, pois todos têm o seu espaço individualizado, com a exceção da criança, que no passado não muito remoto dispunha de um parque infantil para o desenvolvimento de suas atividades, mas que hoje se constitui em exceção. Tal espaço mingou nas cidades. Estas atividades não podem ser vistas apenas como algo a ser feito para o cumprimento da lei. Há implicação muito mais significativa para o adequado desenvolvimento da criança. O Professor Ronald. F. Ferguson, Professor da Faculdade de Educação de Harvard, desenvolveu um programa denominado The Boston Basics – The Basic – uma campanha global pela primeira infância, onde aponta cinco ações simples que ajudam no desenvolvimento da criança:
a) mais amor e menos stress;
b) converse, cante e aponte;
c) conte, agrupe e compare;
d) EXPLORE ATRAVÉS DO
MOVIMENTO E DO JOGO;
e) leia e discuta histórias.

Destaco a questão do movimento e do jogo (brincadeiras) que ajudam na coordenação, força e saúde geral da criança. 5. No tocante à inaptidão das atuais cidades com a nova formatação das sociedades confira CASTELLS,
Manuel, A sociedade em Rede”, VolI, São Paulo: Ed. Paz e Terra, mormente o capítulo 6- O espaço de fluxos.

Jeremy J Walsh, Joel D Barnes, Jameason D Cameron, Gary
S Goldfield, Jean-Philippe Chaput, Katie E Gunnell, e outros, publicaram na revista The Lancet Child & Adolescent Health de setembro de 2018, Vol. 2, No. 11, p783–791, percuciente artigo intitulado “Associations between 24 hour movement behaviours and global cognition in US children: a cross-sectional observational study” no qual fizeram estudo, com 4520 participantes, sobre a correlação entre o tempo em que a criança,
num período de 24 horas, permanece na frente de uma tela e o sono seguindo os parâmetros do movimento “Canadian 24-Hour Movement Guidelines for Children and Youth”6 que recomenda pelo menos 60 min de atividade física por dia, 2 horas ou menos de tempo recreacional na frente de uma tela e de 9 a 11 horas de sono por noite para crianças entre 8 a 11 anos de idade. Em resumo, as crianças que seguiram os parâmetros tiveram desempenho melhor no tocante à cognição superior do que as que não
seguiram.

04.
Desta forma, as atividades de lazer e esporte praticadas pelas crianças constituem em componente singular ao seu desenvolvimento e educação, razão pela qual há necessidade de uma revisão nas políticas públicas hoje
existentes em favor de parcelas da comunidade para contemplar a criança. Somente assim, pode-se pensar em uma sociedade inclusiva e que pensa em seu futuro, pois não há futuro adequado se não ocorrer o investimento no desenvolvimento das crianças. Estas ações visam garantir uma maior igualdade de oportunidade a toda sociedade. Os mecanismos jurídicos para a efetivação desse direito estão previstos na Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, conhecido como Estatuto das Cidades, que prevê como objetivo da política urbana o lazer (art. 2º, inc. I), permitindo que os municípios, através do direito de preempção, possam adquirir imóveis para implantação de espaços públicos destinados ao lazer (art. 26, VI).
Por fim, ressaltamos a advertência lançada pela professora
Suselaine A. Zaniolo Mascioli: A iniciativa legal de considerar a criança como sujeito de direitos representa, por um lado, conquistas para a infância e para o campo da educação infantil, contudo, tal fato nos remete a observar a questão por um outro prisma, pois se 6 Os parâmetros estão disponíveis em http://www.csep.ca/view.asp?x=696 acessado em 22 de outubro de 2018 esses direitos fossem realmente assegurados, não necessitariam ser legislados, portanto, os mesmos vêm sendo historicamente transgredidos (obra citada, p. 106).


Trata-se de uma triste constatação: se a criança estivesse efetivamente brincando, praticando esporte ou realizando atividades de lazer, não haveria a necessidade de leis para se garantir tal direito. Alguma coisa está errada e precisa urgentemente ser mudada. E isso depende de todos nós.