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ALTA A PEDIDO FRENTE AO ESTATUTO DA
CRIANÇA OU ADOLESCENTE
Luiz Antonio Miguel Ferreira1
- Considerações iniciais.
A família, a comunidade, a sociedade em geral e o Estado têm o dever de
assegurar com absoluta prioridade a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e
adolescentes relativos à vida, saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência
familiar.
Essa prioridade na proteção dos direitos da criança e do adolescente é imposta a
todos e está assegurada pela Constituição Federal (art. 227, caput) e pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (art. 4º). Especificamente com relação ao direito à vida e à
saúde, os pais, os responsáveis, os médicos, enfim todos os profissionais ligados à saúde
ou não, são responsáveis pela garantia de tal direito à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, visando o seu nascimento e o desenvolvimento sadio e
harmonioso, em condições dignas de existência.
Estabelece ainda o Estatuto da Criança e do Adolescente, que essa garantia de
prioridade absoluta na efetivação do direito à vida e à saúde, compreende entre outras
ações, a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias e
precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, em respeito
à condição peculiar de pessoa em processo de desenvolvimento (Art. 4º, parágrafo
único). Qualquer ação ou omissão ou a negligência, que vier a ferir esses preceitos
fundamentais importa na responsabilidade do agente, tanto na esfera penal, como civil e
administrativa.
Os pais são os primeiros responsáveis pela garantia do direito à vida e à saúde
das crianças e dos adolescentes. A seguir, pela determinação legal, assumem tal
responsabilidade a sociedade e o Poder Público. A responsabilidade dos pais decorre do
pátrio-poder (ECA., art. 22). Entretanto, este poder não é absoluto, apresentando certas
restrições, todas as vezes que a ação ou omissão dos mesmos venha a colocar a criança
ou o adolescente em situação de risco social e pessoal (ECA, art.98, I). Nessa hipótese,
assumem a responsabilidade pelo referido direito os demais atores apontados na lei, ou
seja, a sociedade, a comunidade em geral e o Poder público.
Assim, quando os pais não cumprem o seu papel, justifica-se a intervenção na
família como forma de garantir o direito à vida e a saúde da criança. O pai que deixa a
criança em abandono; pratica atos violentos contra a mesma, como maus tratos ou abuso
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Promotor de Justiça do Estado de São Paulo. Mestrando em Educação pela UNESP. Home page:
www.pjpp.sp.gov.br – e-mail. lamfer@stetnet.com.br
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sexual; não atende as determinações do Juízo; deixa de prestar assistência à saúde do
filho ou não atende as orientações médicas referente à saúde da criança, estará
colocando a mesma em situação de risco, justificando a citada intervenção na família.
Sob o manto do efetivo exercício do pátrio poder, os hospitais e médicos têm
vivenciado uma prática comum e que é apontada como uma das causas de ocorrência de
óbitos evitáveis, referente à denominada “alta a pedido”, que se caracteriza quando os
pais retiram a criança do hospital, assinando um “termo de responsabilidade”,
solicitando sua alta médica, independente de representar o melhor encaminhamento à
criança.
Diante desta situação, como deve agir o médico responsável pelo atendimento da
referida criança ou o diretor do hospital frente à atuação dos pais ou responsáveis no
lídimo exercício do pátrio poder? Como agir para garantir o direito à vida e à saúde da
criança previstos na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente ?
- O problema da alta a pedido.
O alvo de toda atenção do médico é a saúde e a vida do ser humano, em
benefício do qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade
profissional (Código de Ética Médica art. 2º), empregando todos meios necessários em
favor do paciente (Código de Ética Médica, art. 57).
Este dever apresenta uma limitação prevista no próprio Código de Ética Médica,
já que o médico deve respeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua
pessoa ou seu bem estar e sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas,
salvo no caso de iminente perigo. É o que estabelecem os artigos 48 e 56 do Código de
Ética Médica.
No caso do paciente ser criança ou adolescente, seus responsáveis legais (pais,
tutores ou guardiões) é que devem manifestar-se quanto ao tratamento realizado.
Quando o paciente estiver em iminente perigo, a autoridade do médico é
indiscutível, dando o Código de Ética Médica suporte legal para tal atuação. Neste caso,
o médico não esta obrigado a seguir a vontade do paciente ou de seu responsável,
devendo dar continuidade ao tratamento dispensado à criança ou o adolescente que se
encontra nessa situação, pois sua conduta impõe-lhe a responsabilidade de garantir a
vida dos mesmos.
Nas demais hipóteses, ou seja, quando a criança ou o adolescente não estiver em
“iminente perigo de vida” à vontade dos responsáveis quanto à “alta a pedido” também
deve ser analisada com cautela, já que o pátrio poder não garante o direito absoluto
quanto à vida da criança. Nessas hipóteses, deve ser analisado o grau de
responsabilidade dos pais ou responsáveis e se a conduta dos mesmos não coloca em
risco à vida da criança. Caso se vislumbre a ocorrência de risco, por menor que seja,
deve ser negada a alta e comunicado, imediatamente o Conselho Tutelar ou o Juízo da
Infância e da Juventude, caso o município não possua o referido Conselho, para as
providências pertinentes.
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A alta a pedido, pode ser aceita em casos especiais desde que:
a) Para encaminhamento a outro centro médico ou outro médico. No caso de não
haver concordância com o tratamento proposto ou, achando o médico tratar de
conduta inadequada por falta de recursos, é seu direito abrir mão do caso,
passando formalmente a responsabilidade para outro profissional que esteja
disposto a assumi-lo.
b) Quando a criança ou o adolescente esteja fora da situação de risco. Caso em que
o profissional tem a convicção, segundo seu prognóstico, de que o paciente já se
encontra fora de qualquer perigo.
Em conclusão, a alta a pedido, dependerá sempre da situação do paciente, sendo
que somente o médico tem competência e condições de avaliar as conseqüências da
mesma, pois referido pedido “pode gerar danos à vida e à saúde do paciente, no instante
que ele interrompe o processo de tratamento”. “Dessa maneira, se após refletir sobre o
estado de saúde do recém-nascido o profissional concluir que, efetivamente , a alta
agravará a situação do mesmo, ele deverá recusá-la”. “Vale dizer que, se a saúde do
paciente agravar-se em conseqüência da alta a pedido, o profissional que autorizou
poderá ser responsabilizado pela prática de seu ato, no caso, por omissão de socorro,
imprudência ou negligência”. (Consulta n. 26.574/92 do CREMESP aprovada na 1.586ª
RP em 29/03/94).
O profissional da área da saúde, deverá estar atento a tais situações, sob pena de
se comportar de forma negligente que se “caracteriza pela inação, indolência, inércia,
passividade”. Como esclarece Miguel Kfouri Neto2
:
“Na lição de Avecone, a negligência é o oposto da diligência, vocábulo
que remete à sua origem latina, diligere, agir com amor, com cuidado e
atenção, evitando quaisquer distrações e falhas. Portanto, na base da
diligência está sempre uma omissão dos comportamentos recomendáveis,
derivados da comum experiência ou das exigências particulares da prática
médica”. - Termo de responsabilidade
Apresenta-se como costume dos hospitais ao proceder a “alta a pedido”, a
lavratura de um “termo de responsabilidade” devidamente assinado pelo pai ou
responsável como forma de se buscar a isenção de qualquer conseqüência do ato.
Tal conduta afronta o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente,
pois o profissional da área da saúde, em especial o médico, também é responsável pela
vida e saúde do paciente, no caso, criança ou adolescente, não podendo esquivar-se de
sua responsabilidade, diante de um pedido dos pais ou responsáveis.
2
Responsabilidade Civil do Médico. 2ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1996, p. 74.
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Nessa hipótese, lembra Iray Novah Moraes3
:
“Diante de circunstância tal que o profissional seja impedido, pelo
doente ou seu responsável, de proceder a seu critério, utilizando os
recursos convencionais, ele deve recorrer à Justiça, que lhe dará
autorização para proceder dentro de seus princípios técnicos
modernos”.
Assim, verificando a necessidade do tratamento, a alta deve ser recusada e o
Conselho Tutelar ou o Juizado da Infância e da Juventude (nas cidades que não possuem
Conselho Tutelar) devidamente acionado para o encaminhamento do caso. Deve-se
evitar a alta e posterior “termo de responsabilidade”, pois a garantia da vida e da saúde
da criança ou do adolescente não se limita apenas a esta atitude passiva de
encaminhamento ou entrega aos pais.
Nesse sentido, o relator Conselheiro Dr. Pedro Paulo Roque Monteleone no
citado parecer do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo esclarece:
“… se restarem infrutíferas as tentativas do médico, com o atual Estatuto
da Criança e do Adolescente, em face das dúvidas quanto ao tratamento
ministrado pela equipe médica e da recusa em fornecer a alta a pedido,
a Vara da Infância e da Juventude deverá ser acionada para a resolução
do conflito”.
Mais adiante ao tratar do termo de responsabilidade afirma:
“O termo de responsabilidade só teria valor naqueles casos em que a retirada
do recém-nascido do hospital não colocasse em risco a saúde do mesmo. Como
a questão foi colocada, tal documento não isenta a equipe médica da
responsabilidade; as eventuais complicações que a criança vier a apresentar
serão de responsabilidade do profissional que autorizou a alta a pedido. Vale
ressaltar, mais uma vez, que o profissional poderá responder por omissão de
socorro, negligência e por imprudência, mesmo se lavrado o termo de
responsabilidade”.
Nessa mesma linha apresenta-se a Consulta n. 1.665-13/86 do CREMESP cuja
relatora Conselheira Maria Cacilda Câmara Lima assim se manifestou:
“… a validade do “termo de responsabilidade” assinado pelos responsáveis
pelos pacientes nos casos de alta, tem sua eficácia condicionada ao estado de
saúde do paciente, e essencialmente aos riscos que a alta possa vir a lhe
causar, não isentando de responsabilidades, igualmente, os profissionais que
atenderam o paciente até a efetiva data da alta”.
A referência do encaminhamento à Justiça, deve ser entendida como a
comunicação ao Conselho Tutelar, pois a Justiça da Infância e da Juventude somente
3
Erro médico e a lei. 3ª edição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995, p. 315.
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será acionada no município que não possuir tal Conselho ou pela provocação do mesmo,
diante da resistência dos pais ou responsável em acatar as suas deliberações.
Deve-se ainda ter cautela redobrada quando se tratar de pedido de alta formulada
por genitores menores de 21 anos de idade que não sejam casados legalmente, pois
nesta situação ainda não são plenamente capazes, não obstante possuírem um filho.
- Dos encaminhamentos do Conselho Tutelar.
Uma vez verificada a impossibilidade da alta a pedido, o médico ou o hospital
deve encaminhar o caso ao Conselho Tutelar, que poderá tomar providências tanto em
relação à criança ou adolescente como aos pais.
Em relação à criança e adolescente, o Conselho Tutelar poderá aplicar uma das
medidas de proteção previstas no artigo 101, I a VII do Estatuto da Criança e do
Adolescente, como orientação, apoio e acompanhamento temporário; inclusão em
programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;
requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou
ambulatorial e ainda abrigo em entidade.
Quanto aos pais, o Conselho Tutelar poderá impor as medidas previstas no artigo
129, I a VII do Estatuto da Criança e do Adolescente com especial atenção à obrigação
de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado.
Caso os pais não cumprirem as determinações do Conselho Tutelar ou do Juízo,
poderá ser destituído ou suspenso do pátrio poder, pois se deve garantir, com absoluta
prioridade, os direitos das crianças e dos adolescentes.
Assim, caso os pais solicitem alta a pedido e não sendo caso de tal
procedimento, o Conselho Tutelar poderá impor aos mesmos a obrigação do tratamento.
Diante de eventual resistência, haverá a intervenção do Poder Judiciário e do Ministério
Público no sentido de garantir o direito à vida da criança. - Considerações finais.
Pelo que foi exposto, verifica-se que o interesse do menor deverá sempre
sobrelevar ao daqueles que são seus responsáveis. Tanto por parte dos pais, detentores
do pátrio-poder; quanto por parte dos profissionais de saúde, como médicos,
enfermeiros e até mesmo o hospital. Estes deverão zelar, acima de tudo pelo bem da
criança ou adolescente.
O Conselho Tutelar, o Juiz da Infância e Juventude e o Promotor de Justiça são
parceiros necessários nessa luta para garantia da vida da criança e do adolescente,
podendo o profissional da área da saúde contar com esta parceria para o bom
encaminhamento dos casos. Assim, deverão ser acionados todas as vezes que surgir
lesão, ameaça de lesão, ou conflito de interesse que envolva criança ou adolescente, os
pais ou responsáveis e os médicos.
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O desrespeito a tal normatividade resulta na responsabilidade criminal, cível e
administrativa, sendo que o “termo de responsabilidade” não tem o condão de afastar tal
implicação.
Por fim, vale ressaltar que o bom encaminhamento dos casos de alta a pedido,
poderá levar a uma redução da mortalidade infantil, quando observadas todas a cautelas
e diligências inerentes ao paciente menor.