O Aluno com Deficiência e a Pandemia

O Aluno com Deficiência e a Pandemia

Carlos Roberto Jamil Cury[1]

Luiz Antonio Miguel Ferreira[2]

Luiz Gustavo Fabris Ferreira[3]

Ana Mayra Samuel da Silva Rezende[4]

 

 

I – INTRODUÇÃO

            A pandemia desabou o nosso cotidiano rotineiro e escancarou a desigualdade existente na sociedade, e, por consequência, do sistema educacional. A desigualdade de acesso à informação e tecnologia, bem como a de oportunidades apresentaram-se na pauta educacional.

            Todos que possuem uma ligação com a educação foram atingidos – professores, alunos, diretores, coordenadores pedagógicos, pais – sendo que a intensidade não foi uniforme, posto que alguns o foram mais severamente.

            Dentro deste cenário destaca-se a situação do aluno com deficiência, que acabou recebendo um impacto significativo diante do abrupto fechamento das escolas e da ausência de uma sistemática educacional que pudesse responder às suas demandas. Também merece atenção especial neste cenário de pandemia, o papel da escola frente a esta situação inusitada, e quais ações desenvolver para a efetividade de um sistema educacional inclusivo.

            Com relação ao aluno com deficiência, verifica-se, mais uma vez, que foi esquecido. Vários foram os artigos, publicações e lives que trataram da educação como um todo, mas que não deram a devida atenção ao aluno com deficiência. Era como se ele não existisse ou não precisasse e/ou sofresse com o fechamento das escolas. Representou esta pandemia um retrocesso no tratamento a ser dado ao aluno com deficiência, pois remeteu o seu cotidiano a um paradigma ultrapassado de isolamento.

            Da mesma forma, a escola, que já apresentava dificuldades para lidar com o aluno com deficiência em uma situação de normalidade, em função pandemia ora vivenciada deixou evidente o seu despreparo. No entanto, a escola é reconhecidamente o “locus da equidade”, de forma que deve proporcionar a todas as crianças e adolescentes, inclusive com deficiência, acesso igualitário à cultura, evitando medidas que acentuem eventual desigualdade. Ela deve trabalhar para que o Sistema Educacional Inclusivo seja efetivo, mesmo em tempos de pandemia.

            Diante desse quadro, o presente artigo tem como foco a questão do aluno com deficiência diante da pandemia, retratando, não somente a situação atual com a interrupção das aulas e isolamento social, como também o seu retorno e as dificuldades que deverão ser enfrentadas.

II – O DIREITO À EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA

            O Direito à Educação, conforme ensina Mônica Sifuentes “passou a ser mesurado como um valor de cidadania e de dignidade da pessoa humana, itens essenciais ao Estado Democrático de Direito”. Além disso, é “condição para a realização dos ideais da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária, nacionalmente desenvolvida, com a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais, livres de quaisquer formas de discriminação (art. 3º da CF) (2009, p. 18).

            Mesmo com a pandemia o Direito à Educação deve ser garantido, porém, tendo como marco delineador o direito à saúde. Com efeito, a Constituição Federal estabelece no artigo 227:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

            Verifica-se que o primeiro direito a ser garantido é o Direito à Saúde, pois de nada adianta falar em alimentação, educação, lazer, dignidade, e os outros direitos, sem garantir, em primeiro lugar, o direito à vida e à saúde. A pandemia do COVID-19 tem relação direta com a saúde do aluno, do professor e dos demais profissionais da educação. Qualquer decisão sobre suspensão das aulas ou seu retorno, tem como marco balizador a saúde das pessoas que estão envolvidas. E, nesse particular, uma atenção especial ao aluno com deficiência.

            Aliás, especificamente em relação a este aluno com deficiência, a educação emancipatória, prevista constitucionalmente (CF. art. 205), foi mais bem traduzida no Plano Nacional de Educação (Aprovado pela Lei n. 13.005/2014), que na meta 04 estabeleceu a garantia de um SISTEMA EDUCACIONAL INCLUSIVO que contempla todas as ações  a serem desenvolvidas para que os alunos com deficiência possam exercer o seu direito à educação (FERREIRA, 2019, p. 188), com os recursos necessários para tanto. Esse plano, de maneira exemplificativa, cita as salas de recursos multifuncionais e serviços especializados, a acessibilidade aos prédios, a oferta de educação bilíngue, tecnologia assistiva, apoio ao atendimento escolar integral e, também, o estímulo à participação das famílias.

            Assim, a garantia do direito à educação ao aluno com deficiência, mesmo em tempo de pandemia, deve ter como linha de atuação este sistema educacional inclusivo, ou seja, mesmo em casa, deve o aluno receber toda a assistência necessária para que possa se desenvolver educacionalmente.

            A pandemia tratou de alterar uma rotina consolidada no sistema educacional, e que de maneira geral não retrocederá. Algumas alterações vieram para ficar. Estas alterações precisam incluir todos os alunos, para que os objetivos traçados pela Constituição Federal, no artigo 205, sejam cumpridos. Muito provavelmente a principal mudança se deu na relação estabelecida com as famílias. As escolas precisam se colocar juntas com as famílias, para que estas se sintam apoiadas. E como afirmou o professor David Rodrigues: “depois de tanto tempo querendo trazer as famílias para a escola, a pandemia acabou por levar a escola para a família”.

            No sistema educacional inclusivo esta realidade tem que estar presente. Mais do que nunca as famílias precisam do apoio educacional para levar adiante a sua missão.

III – O ALUNO COM DEFICIÊNCIA NA PANDEMIA

Pensar o distanciamento social para quem já vive isolado, em função da falta de acessibilidade urbanística, arquitetônica, comunicacional, tecnológica e, também, devido a inclusão precária, ainda existente em muitos contextos sociais e escolares, é concluir que essa importante camada da população está hiper vulnerável frente a atual realidade.

A convivência social é inerente ao ser humano e fundamental para o desenvolvimento de competências socioemocionais. O distanciamento ora vivenciado por conta da pandemia torna-se mais uma barreira para a inclusão das pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades. A função social da escola está relacionada com a formação humana e suas especificidades, diante dos conhecimentos sistematizados produzidos e reconhecidos historicamente. A escola caracteriza-se como um espaço importante para o convívio com as diferenças, e garante, assim, uma formação integral que envolve competências e habilidades relacionadas às dimensões do desenvolvimento intelectual, social, emocional, físico e cultural.

Nesse contexto, faz-se necessário encarar a pandemia como uma oportunidade para aprender e descobrir como inovar as vivências e práticas pedagógicas. Escutar os estudantes é muito importante neste momento para, assim, compreender suas angústias e inseguranças. Tal ação contribuirá com a elaboração de atividades que proporcionarão o engajamento e a autoconfiança. Dar suporte e escutar os estudantes com deficiências, transtorno do espectro autista e altas habilidades, os tranquilizará para enfrentamento da atual situação.

O Atendimento Educacional Especializado (AEE) é um serviço da Educação Especial articulado às ações da Educação Básica como apoio complementar e/ou suplementar à sala de aula comum, destinado aos estudantes com deficiências, transtorno do espectro autista e altas habilidades. Nesse sentido, surge no contexto educacional inclusivo a perspectiva de transpor as barreiras que causam dificuldades aos estudantes e a necessidade de implementar condições adequadas de acessibilidade para a melhora na sua comunicação e mobilidade. Essas ações irão contribuir eficazmente para sua independência e autonomia.

O AEE não se limita ao espaço físico da Sala de Recursos Multifuncionais. Por isso, em tempos de pandemia, pode e deve ser oferecido aos estudantes que dele necessitem, possibilitando atividades pedagógicas remotas ricas em oportunidade para que cada um aprenda de acordo com suas possibilidades. Destaca-se, também, o apoio que deve ser dado aos professores da sala de aula comum na escolha das atividades curriculares que serão enviadas. Assim, as barreiras atitudinais, tecnológicas e comunicacionais, que se fazem tão presentes na realidade da maioria dos estudantes com deficiência, transtorno do espectro autistas e altas habilidades, serão minimizadas ou até mesmo eliminadas.

A seguir traz-se um rol exemplificativo de sugestões de ações e atividades que podem ser realizadas e/ou sugeridas para os estudantes com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades, por intermédio do AEE articulado à Educação Básica em tempos de pandemia:

A manutenção do vínculo afetivo e social do estudante com deficiência com o profissional da educação especial, professores da educação básica e colegas de sala de aula, é um fator importante a ser considerado durante este período de pandemia. Deve-se, dentro do possível, manter uma rotina regular. Para o estudante com deficiência estar afastado do contexto escolar pode gerar angústia, medo e insegurança, principalmente por não compreender a situação que passamos a vivenciar repentinamente. Assim, estabelecer contato com profissionais e professores, de forma online, pode ser muito importante para manter o vínculo social dos estudantes com deficiência e estabelecer um sentimento de pertencimento à um ambiente que fora frequentado presencialmente.

Neste contexto de distanciamento social, a manutenção do vínculo pode acontecer de diversas maneiras, considerando a realidade de cada Estado, Município e Unidade Escolar. Os profissionais da educação especial e/ou professores da sala de aula comum podem organizar aulas online simultâneas, onde todos os estudantes têm a oportunidade de estarem juntos virtualmente. O envio de vídeos coletivos sobre temas e conteúdo do currículo, ou individuais para felicitações de aniversários ou comemorações acerca de conquistas do estudante em relação às atividades enviadas, pode ser uma alternativa. Para manter o vínculo com o estudante durante este momento inusitado os profissionais da educação podem e devem utilizar a criatividade e os recursos tecnológicos disponíveis.

Considerando os recursos pedagógicos e tecnológicos utilizados no AEE, os profissionais da Educação Especial, articulados à proposta curricular e atividades enviadas pelo professor da sala de aula comum, poderão confeccionar e enviar para os estudantes e seus responsáveis recursos que possam potencializar a proposta e torná-la funcional para proporcionar uma aprendizagem significativa. Também se verifica a necessidade de se estabelecer uma comunicação online compatível com o nível de deficiência do aluno e de acordo com a realidade social, posto que muitas famílias não têm acesso adequado a computadores e a internet.

Envolver os estudantes na confecção os recursos lúdico-pedagógicos e na criação de conteúdo é uma forma de dividir as responsabilidades, transformando-os em protagonistas deste processo de (re)construção de novos conhecimentos. Ressalta-se ser esta uma forma criativa, divertida, colaborativa e interativa para aprender. Os profissionais da Educação Especial podem disponibilizar, para tanto, guias e passo a passo para confecção dos recursos, com figuras acessíveis que facilitem a compreensão de todos.

Os boletins informativos acerca do distanciamento social e medidas gerais de higiene para prevenção contra a COVID-19 podem ser uma alternativa para aproximar os estudantes do contexto escolar, desde que confeccionados com uma linguagem acessível, contendo ilustrações e textos claros. Os boletins informativos, advindo das escolas, além de esclarecer sobre a doença e apresentar medidas preventivas servirá como uma fonte segura de informações, principalmente para as famílias vulneráveis. Estes boletins informativos devem conter informações específicas para cada deficiência, uma vez que a forma de contaminação pode ser mais evidente, como aponta Ferreira e Ferreira (2020).

Os alunos com deficiência devem ser acompanhados de forma mais adequada neste período de isolamento, devendo a escola estabelecer um canal de direto com a família e fornecer momentos de “tutoria individual” conforme a necessidade.

            Destaca-se ainda a necessidade de se buscar uma intervenção que atenda a situação específica da criança, uma vez que crianças muito pequenas “podem não perceber os fatos e entender toda a situação” que estamos vivenciando, porém, “podem se sentir incomodadas com as mudanças na rotina” e avaliar a alteração comportamental daqueles que estão a sua volta[5]. O uso de máscaras, por si só, já é algo diferente na rotina do aluno, de forma que é importante dar voz aos estudantes com deficiência, para que manifestem suas percepções sobre a situação e que processe estas preocupações de forma natural.

            Há uma sobrecarga de atribuições para as famílias que desenvolvem múltiplas tarefas que não se limitam ao ambiente doméstico, mas também profissional. Nesse sentido, há necessidade de um apoio mais efetivo e suporte adequado para estas famílias, visando a diminuição do nível de estresse, que podem interferir no desenvolvimento da criança ou do adolescente com deficiência.

 

IV – O RETORNO ÀS AULAS E O ALUNO COM DEFICIÊNCIA

A Educação Inclusiva não se limita a inserção de pessoas com deficiência na escola. É uma Educação para todo e qualquer aluno. Afinal, todos são diferentes. O mundo é heterogêneo, logo, a inclusão implica o reconhecimento das diferenças de cada indivíduo e a construção de uma sociedade e escola para todos, independentemente de suas características.

A manutenção do vínculo durante o distanciamento social é, diante das demais sugestões de ações mencionadas, um fator fundamental para que o retorno às aulas dos estudantes com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades seja bem-sucedido. Destaca-se que o sentimento de participação e pertencimento são princípios da inclusão escolar.

No retorno às aulas para os estudantes com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades, o ideal seria trabalhar, primeiramente, o acolhimento e o retorno à rotina escolar daqueles que não se enquadram no grupo de risco. Ou seja, portadores de doenças crônicas (doenças cardiovasculares, hipertensão, diabetes, câncer, doenças respiratórias crônicas e cerebrovasculares) devem permanecer em casa. A escola, dessa maneira, proporcionará o ensino remoto para continuação dos estudos no tocante a este grupo mais vulnerável.

Ouvir os estudantes e acolhê-los, neste momento inicial no ambiente escolar, será fundamental para traçar um planejamento pedagógico e um plano de ensino individualizado que garanta o atendimento de suas necessidades formativas, bem como o nivelamento e equidade de oportunidades de condições de acesso e permanência com qualidade em um sistema de ensino.

A conexão com as famílias desses estudantes, a fim de saber seus anseios, dificuldades diante do ensino ofertado de maneira remota, engajamento do estudante diante das atividades sugeridas, faz-se importante neste momento. Assim, será possível traçar e planejar atividades que proporcionem a manutenção da rotina escolar.

Os estudantes que frequentavam a Sala de Recursos Multifuncionais para potencializar o processo de alfabetização, diante de suas especificidades, como a Língua Brasileira de Sinais e o uso do sistema Braille, devem retornar às atividades complementares/suplementares à sala de aula comum para dar continuidade. Desta maneira, os professores da educação especial contribuirão com o nivelamento da aprendizagem e avaliação diagnóstica mediante aos conhecimentos que estavam sendo construídos por estes estudantes antes do distanciamento social devido a pandemia da COVID-19.

Medidas gerais de higiene e prevenção contra a COVID-19 deverão ser mantidas no ambiente escolar no retorno às aulas. A conscientização e a compreensão dos estudantes com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades devem ser garantidas para que sua permanência no contexto escolar seja exitosa pós-pandemia. “O aluno com deficiência, dentro deste cenário de pandemia, deve receber uma atenção especial, em face das reações que poderão advir desta situação adversa. A título de exemplo, a forma de contaminação é mais evidente, pois o deficiente visual depende muitas vezes do tato; o deficiente cadeirante faz sua locomoção utilizando como apoio a roda da cadeira, que tem contato direto com o solo; o usuário de libras necessita de observar os lábios para facilitar a compreensão, e estes estarão tapados pelas máscaras; aquele que necessita de auxílio para o uso de sanitário, tem maior risco de contaminação. Enfim, há necessidade de um olhar mais atento para estes alunos, utilizando-se um conjunto de recursos e de apoios para a sua plena inclusão” (FERREIRA E FERREIRA, 2020).

Outra questão relevante refere-se a evasão escolar, pois sabe-se que um dos efeitos do fechamento prolongado das escolas será o não retorno dos alunos, e, nesse contexto, o estudante com deficiência deve ser visto de maneira especial, com a intervenção intersetorial, envolvendo a saúde e a assistência, na busca ativa deste estudante.

Atividades pedagógicas podem ser realizadas com os estudantes, tornando-os participantes ativos de todo o processo que busca por soluções para a situação-problema que se vivencia mundialmente. Reforços positivos podem ser utilizados sempre que, espontaneamente, o estudante realize uma prática segura e higiênica.

O retorno às aulas presenciais se configura como um desafio para todos (estudantes, familiares, educadores, e demais profissionais da comunidade escolar). No entanto, a escola ensina para além da sala de aula, servindo como niveladora de oportunidades e alavanca da mobilidade social. O fortalecimento das relações entre as famílias e as escolas, durante este período de pandemia, possivelmente levará a uma maior valorização da educação e dos profissionais que nela atuam.

 

 

V – O CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO E O ATENDIMENTO AO PÚBLICO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL

            O Conselho Nacional de Educação emitiu o parecer CNE/CP nº 11/2020, aprovado em 07 de julho de 2020 (ainda não homologado) que trata das “orientações educacionais para a realização de aulas e atividades pedagógicas presenciais e não presenciais no contexto da pandemia”. Especificamente no item 08, lançou orientações para o atendimento ao público da educação especial, detalhando nos seguintes itens:

  • O atendimento deve ser ofertado, pelos sistemas de ensino, em atividades não presenciais ou presenciais, a partir de uma avaliação do estudante pela equipe técnica da escola. O estudante e suas famílias devem ser contatados para informar as possibilidades de acesso aos meios e tecnologias de informação e comunicação;
  • Os professores do Atendimento Educacional Especializado deverão elaborar com apoio da equipe escolar, um Plano de Ensino Individual (PEI), para cada aluno, de acordo com suas singularidades;
  • As orientações e atividades não presenciais deverão ocorrer através de ações articuladas entre o professor do AEE e o acompanhante (mediador presencial) no domicílio, ou com o próprio estudante quando possível, por meio de tecnologias de comunicação;
  • Deverão ser previstas ações de apoio aos familiares ou mediadores, na realização de atividades remotas, avaliações e acompanhamento;
  • Aos professores especializados cabe a promoção de acessibilidade nas atividades, disponibilizando a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) para os surdos, materiais pedagógicos acessíveis e adequados à interação e comunicação aos alunos com outros impedimentos;
  • Aos alunos com altas habilidades e superdotação deve ser garantido acesso ao atendimento educacional especializado, presencial ou não presencial, considerando seu programa de enriquecimento curricular e atividades suplementares.

Consignou-se que “retorno à escola do público da Educação Especial deve seguir as mesmas orientações gerais, de acordo com o poder regulatório próprio dos sistemas de ensino federal, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios que possuem a liberdade de organização do fazer pedagógico”. Porém, após afirmar que o retorno à escola pública deve seguir as mesmas orientações gerais, ou seja, sem qualquer discriminação[6], o referido parecer, no item 8.1 foi além e deliberou que:

8.1. Os estudantes da Educação Especial devem ser privados de interações presenciais, considerando questões como:

  • Os alunos surdos sinalizantes não podem usar máscaras, pois as expressões faciais são elementos linguísticos da LIBRAS, e os estudantes com deficiência auditiva que se beneficiam de oralidade precisam fazer leitura labial;
  • Os estudantes que necessitam do profissional de apoio escolar para alimentação, higiene e locomoção ficam em risco, pela exigência de contato físico direto;
  • Os estudantes cegos precisam de contatos diretos para locomoção, seja com pessoas ou objetos como bengalas, corrimões, maçanetas etc.
  • Os alunos com deficiência intelectual podem apresentar dificuldades em atendimento de regras sobre as recomendações de higiene e cuidados gerais para evitar contágio;
  • Os estudantes com autismo têm dificuldades nas rotinas e de obediência de regras, tocam sempre olhos e boca, além de exigirem acompanhamentos nas atividades de vida diária;
  • Os estudantes com síndromes e/ou os que apresentam disfunções da imunidade, cardiopatias congênitas, doenças respiratórias e outras podem ser suscetíveis a maior risco de contaminação, por isto o contato deverá ser revestido de todos os cuidados possíveis, inclusive com a exigência de equipamentos de proteção individual para ambos;
  • Os estudantes com comprometimento na área intelectual podem apresentar dificuldades de compreensão e atendimento das normas e recomendações de afastamento social e prevenção de contaminação, por isto, o contato deverá ser revestido de todos os cuidados possíveis, inclusive com a exigência de equipamentos de proteção individual para ambos;
  • Aos estudantes com deficiência física por lesão medular ou encefalopatia crônica como paralisia cerebral, hemiplegias, paraplegias e tetraplegias e outras, e aos que estão suscetíveis à contaminação pelo uso de sondas, bolsas coletoras, fraldas e manuseios físicos para a higiene, alimentação e locomoção, recomenda-se não apenas o uso de equipamento de proteção individual, mas extrema limpeza do ambiente físico.

Finalizou o parecer no item 8.2 consignando: “Vale ressaltar que estudante com deficiências e/ou transtorno do espectro autista, por razões supracitadas de maior vulnerabilidade, não devem retornar às aulas presenciais ou Atendimento Educacional Especializado, enquanto perdurarem os riscos de contaminação com o Coronavírus”.

            De início, constata-se que o posicionamento do Conselho Nacional de Educação é contraditório, pois o item 8.1 afronta o que estabelece o item 8.0 que estabelece o retorno do aluno com deficiência seguindo as mesmas orientações gerais. Também contraria de forma clara o disposto art. 5º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009), que veda a discriminação baseada na deficiência e determina a adoção de todas as medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja oferecida.

O parecer atribui à pessoa com deficiência uma situação de risco, tão somente por ser deficiente, quando na verdade não deve existir correlação automática entre deficiência e risco. A decisão sobre o retorno de tais estudantes deve ser baseada na análise individual de cada caso e no seu enquadramento ou não nos grupos de risco da COVID-19. É a sua saúde que deve ser avaliada para possível retorno, e não a deficiência. Este deve ser o marco orientador para o retorno dos alunos com deficiência as atividades educacionais presenciais.

Constata-se que o citado posicionamento também ofende a Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146/2015) que no Capítulo II trata da “igualdade e da não discriminação” detalhando no artigo 4º que “toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”.

O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência fez um manifesto público de recomendação ao CNE para alteração do citado parecer[7], apresentando sugestões para a devida adequação aos interesses e necessidades das pessoas com deficiência, como:

I – Os alunos surdos sinalizantes podem usar máscaras de material transparente que não atrapalhe a leitura das expressões faciais, vez que são elementos linguísticos da LIBRAS, e os estudantes com deficiência auditiva que se beneficiam de oralidade precisam fazer leitura labial;

II – Os profissionais de apoio escolar e os cuidadores que atuam junto à alimentação, higiene e locomoção, em razão de contato físico direto, deverão utilizar a paramentação recomendada pelas entidades sanitárias;

III – Os estudantes cegos e de baixa visão que precisam de contatos diretos para locomoção, seja com pessoas ou objetos como bengalas, corrimões, maçanetas etc., devem ser orientados e auxiliados na higienização de seus pertences, bem como na assiduidade de limpeza das mãos;

IV – Parte dos alunos com deficiência intelectual pode apresentar dificuldade em atendimento de regras sobre as recomendações de higiene e cuidados gerais para evitar contágio, razão pela qual devem ser assistidos e orientados em todo o período que estiverem na instituição de ensino;

V – O aluno autista, a depender do grau de comprometimento, pode ter dificuldades na execução de algumas atividades de combate ao coronavírus no ambiente escolar, razão pela qual deve ser acompanhado e orientado durante o tempo em que permanecer na instituição de ensino;

VI – Todos os estudantes, com deficiência ou não, que forem acometidos por síndromes e/ou os que apresentam disfunções da imunidade, cardiopatias congênitas, doenças respiratórias e outras podem ser suscetíveis a maior risco de contaminação, por isto o contato deverá ser revestido de todos os cuidados possíveis, inclusive com a exigência de equipamentos de proteção individual para ambos;

VII – Os estudantes com comprometimento na área intelectual que apresentarem dificuldades de compreensão e atendimento das normas e recomendações de afastamento social e prevenção de contaminação deverão ser assistidos, orientados e, se necessário, paramentados no período em que estiverem na instituição de ensino.

VIII – Os estudantes que tenham lesão medular ou encefalopatia crônica como paralisia cerebral, hemiplegias, paraplegias e tetraplegias e outras, e os que estão suscetíveis à contaminação pelo uso de sondas, bolsas coletoras, fraldas e manuseios para a higiene, alimentação e locomoção, recomenda-se não apenas o uso de equipamento de proteção individual, mas extrema limpeza do ambiente físico.

A sociedade civil vê com bons olhos a iniciativa do CNE em elaborar um Parecer voltado para as pessoas com deficiência, pois, segundo a lei de sua criação, apela-se para a participação da sociedade civil em vista do aperfeiçoamento da educação. (lei n. 9131/95, art. 7º). Contudo, manifesta-se contrária a trechos do parecer que colidem com a legislação nacional e internacional como é o caso do inciso 8. 1, e assim pedem a sua não homologação, ou a retirada do item 08, por afronta aos princípios já mencionados[8]. No mesmo sentido o Ministério Público Federal que emitiu recomendação n. 29/2020, em 17/julho/2020 (procedimento administrativo n. 1.16.000.000824/2020-16) ao Ministério da Educação para a não homologação dos itens 8/8.2 do citado parecer do CNE.

O Ministério Público do Estado de São Paulo criou um comitê específico para tratar das questões relacionadas a Pandemia da COVID-19, sendo que a área da Pessoa com Deficiência, mesmo antes do parecer do CNE, já tinha se posicionado ao atendimento igualitário, conforme se constata de alguns dos enunciados elaborados:

 

1 – A educação é direito de todos, não sendo admissível qualquer forma de oferta educacional que desconsidere segmentos populacionais específicos, acentuando ainda mais as desigualdades de acesso e de padrão de qualidade já observadas em períodos letivos não excepcionais. Assim, quando os sistemas de ensino optarem pela disponibilização de  atividades remotas, durante o período de suspensão das aulas presenciais em razão da atual pandemia, estas devem ser ofertadas para os estudantes de todos os níveis, etapas e modalidade de ensino, incluindo os alunos público-alvo da educação especial (pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades/superdotação), que precisam ter o seu direito à aprendizagem garantido e respeitado. As políticas públicas de educação e os eventuais programas de atividades escolares não presenciais desenvolvidos neste período devem garantir, nos termos do artigo 28 da Lei no. 13.146/2015, condições de acesso, participação e aprendizagem aos alunos público-alvo da educação especial, por meio da oferta – ainda que remota – de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena, vedando-se práticas que os segregam do projeto pedagógico destinado a todos os alunos.

2 – Na elaboração da política pública de educação especial em contexto de pandemia, os sistemas de ensino devem garantir espaço de participação aos alunos, seus familiares, Conselhos, entidades e associações representativas das pessoas com deficiência.

3 – O Poder Público deve adotar medidas para tornar acessíveis as ofertas pedagógicas não presenciais aos alunos público-alvo da educação especial em todos os níveis, etapas e modalidades educacionais. É essencial a disponibilização de suportes e recursos que assegurem o acesso e a participação deste grupo de estudantes, garantindo o padrão de qualidade pedagógica, conforme aponta o Parecer CNE/CP nº 05/20, item 2.13 (aprovado em 28.04.20). Deve ser oportunizada uma diversificação de modalidades de interação e suportes tecnológicos, como, por exemplo, atividades em vídeo, em áudio, síncronas (on-line), assíncronas (desconectadas), em texto, entre outros recursos didáticos que se façam necessários.

4.1 – Os planos individuais de atendimento educacional especializado devem explicitar as estratégias de acesso ao currículo, com destaque para a mediação entre o trabalho desenvolvido pelo professor da educação especial e o professor da classe comum, o uso do material didático, as orientações para realização das atividades, as condições de mobilidade e acessibilidade aos meios de informação e comunicação aos alunos público alvo da educação especial, as orientações para os familiares, as avaliações, dentre outros aspectos. Ressalta-se que o trabalho entre os diversos profissionais da escola deve ocorrer de forma articulada e colaborativa, promovendo a acessibilização das atividades ofertadas a todos os alunos. Desta forma, os alunos público-alvo da educação especial não devem receber atividades distintas, no que diz respeito ao currículo, das dos demais alunos de sua turma, evitando-se, assim, o aprofundamento de uma lógica inconstitucional de segregação.

Especificamente no que diz respeito ao retorno as aulas, o Comitê da Pessoa com Deficiência do Ministério Público do Estado de São Paulo, deixou consignado:

10 – Quando do retorno às aulas presenciais, devem ser desenvolvidas, no escopo dos protocolos de retomada das atividades, estratégias voltadas aos alunos público-alvo da educação especial, considerando condições específicas de mobilidade, comunicação, dentre outras; evitando que sejam expostos a situações de risco e zelando para que sejam reconhecidos e valorizados como pessoas dignas e capazes de aprender. Deve-se zelar para que referidos alunos e familiares participem, inclusive, da elaboração dos protocolos de retomada de aulas presenciais em suas respectivas unidades de ensino.

10.1 – Os procedimentos pedagógicos devem ser implementados de modo a evitar prejuízos ou, ao menos, para garantir a reparação dos prejuízos relacionados à aprendizagem dos alunos público alvo da educação especial acumulados no período de isolamento. O processo de retorno às aulas e da permanência destes estudantes no ambiente escolar deve ser acompanhado junto às escolas e às famílias, como medida de prevenção à evasão escolar.

Constata-se que a preocupação maior é que o aluno com deficiência seja incluído de forma a garantir o seu direito à educação.

 

 

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Não há como negar que a pandemia proporcionou um novo olhar sobre a escola em razão do seu fechamento, como, por exemplo, a sua real necessidade, não somente no aspecto pedagógico, como também assistencial, em face de sua capilaridade. Como já se afirmou: “A escola fechou e o mundo fecha. Os direitos humanos fecham para muitas pessoas”. É neste momento que as desigualdades se potencializam, sendo a escola o principal fator de equidade.

O direito à vida deve ser prioritário neste momento. O retorno às aulas não significa voltar como era antes, serão necessárias medidas seguras e protetivas em relação à COVID-19. No entanto, é preciso lutar contra as desigualdades, não se pode privar o direito à educação por conta do medo. Neste cenário, faz-se necessário criar protocolos e mecanismos que proporcionem a plena participação e desenvolvimento de todos os estudantes no contexto escolar de maneira segura e eficaz.

            Durante a pandemia a maioria dos sistemas educacionais se organizaram de forma a garantir que a aprendizagem dos estudantes se desse de forma remota, e, para isso, contaram com o apoio familiar. A relação escola-família se fortaleceu em razão da pandemia, com uma valorização recíproca para as instituições. Isto traz um resultado positivo para inclusão, uma vez que esta aproximação é benéfica para o estudante com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades.

            A educação não será a mesma, pois a pandemia acarretou mudanças significativas que não retrocederão. O conteúdo presencial será compartilhado com o ensino remoto. E é nesse contexto que o estudante com deficiência e suas especificidades deve ser considerado. Não se pretende uma escola diferente para alguns, mas uma escola igual para todos, respeitando e valorizando as diferenças humanas que caracterizam cada um.

            Levando em consideração os tópicos abordados neste artigo, um sistema educacional inclusivo é aquele que pensa suas ações a partir de princípios como a equidade, garante o ensino para todos, proporciona apoio e suporte necessário, assume e incorpora os conceitos de respeito às diferenças, participação e pertencimento de todos os seus estudantes.

 

 

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO/Conselho Pleno. Parecer CNE/CP n. 11/2020. 07/07/20. Processo n. 23001.000334/2020-21. Brasília.

 

FERREIRA, Luiz Antonio Miguel. Do Direito à Educação. IN: Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. Coordenação de Flávia Piva Almeida Leite, Lauro Luiz Gomes Ribeiro e Waldir Macieira da Costa Filho. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

 

FERREIRA, Luiz Antonio Miguel e FERREIRA, Luiz Gustavo Fabris. A volta às aulas no novo normal. 2020. http://miguelferreira.com.br/2020/07/10/a-volta-as-aulas-no-novo-normal/

 

SIFUENTES, Mônica. Direito Fundamental à Educação: a aplicabilidade dos dispositivos constitucionais. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2009.

 

VATS, Dr. Swati Popat. Presidente ECA & APER Traduzido e adaptado por Profª Drª Vera Melis Paolilo. ORIENTAÇÕES PÓS-COVID 19 PARA A REABERTURA DE PRÉ-ESCOLAS E CRECHES – pag. 27.

 

[1]  Professor Titular da UFMG (aposentado); Professor Adjunto da PUC Minas.

[2] Advogado e consultor. Promotor de Justiça aposentado do Estado de São Paulo. Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Autor do livro: O ECA e o professor. Membro do conselho Consultivo da Fundação e Sócio Efetivo do Todos pela Educação.  Sócio do Instituto Fabris Ferreira.

[3] Advogado. Sócio do Instituto Fabris Ferreira.

[4] Professora de Educação Básica I pela Secretaria Municipal de Educação de São José do Rio Preto/SP. Mestre (2018) e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Presidente Prudente/SP. Membro dos Grupos de Pesquisa “Ambientes Potencializadores para Inclusão” e “Políticas e Práticas de Educação Inclusiva”.

Artigo escrito em julho de 2020.

[5] Vats, Dr. Swati Popat. Presidente ECA & APER Traduzido e adaptado por Profª Drª Vera Melis Paolilo. ORIENTAÇÕES PÓS-COVID 19 PARA A REABERTURA DE PRÉ-ESCOLAS E CRECHES – 2020, pag. 27.

[6] “… o retorno à escola do público da Educação Especial deve seguir as mesmas orientações gerais, de acordo com o poder regulatório próprio dos sistemas de ensino federal, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios que possuem a liberdade de organização do fazer pedagógico.” (p. 25 do Parecer).

[7] https://jornalggn.com.br/sites/default/files/2020/07/parecer-recomenda-o-retorno-gradual-as-escolas-excluindo-pessoas-com-deficiencia-manifesto-para-alteracao-do-parecer-cne-n-11-2020.pdf

[8] Laboratório de Estudos e Pesquisa em Ensino e Diferença (LEPED), Grupo de trabalho de Educação Especial (GT15) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e a Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial(ABPEE) (15/07/2020), Núcleo de Estudos e Políticas de Inclusão Escolar (NEPIE/UFRGS) (14/07/2020), Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos (ANADEP) (07/2020).