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ISENÇÃO DO ICMS NA AQUISIÇÃO DE VEÍCULOS AUTOMOTORES
DESTINADOS ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA.
UMA ANÁLISE CRÍTICA QUANTO AOS DESTINATÁRIOS DA NORMA.
Luiz Antonio Miguel Ferreira1
Letícia Lourenço Pavani2
- Introdução
A Constituição Federal de 1988 garantiu à pessoa com deficiência, além dos
direitos expressos a todo e qualquer cidadão, uma gama de direitos específicos como a
reserva de vaga no mercado de trabalho (Art. 7º, XXXI), assistência social (art. 203, IV e
V), educação (art. 208, III), a garantia de transporte e eliminação de barreiras
arquitetônicas (art.227, §1º, inciso II e §2º e art. 244), com o reconhecimento de sua
cidadania e tendo como objetivo a sua inclusão social. A Constituição Federal a garantir
tais direito, tratou da pessoa com deficiência de uma maneira geral, sem especificar uma ou
outra modalidade de deficiência.
Visando dar efetividade a estes direitos foram editadas várias normas, tanto
no âmbito federal como no estadual, como a Lei 7.853 de 24 de outubro de 1989 que
institui a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência –
CORDE; a Lei 10.048 de 08 de novembro de 2000 que dá prioridade de atendimento às
pessoas portadoras de deficiência; a Lei 10.098 de 19 de dezembro de 2000, que estabelece
sobre a acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência, entre outras.
Também foram editadas leis específicas que buscam garantir a inclusão
social do portador, conforme estabelecido pela Constituição. Dentre estas várias leis,
1
Promotor de Justiça da Infância e da Juventude e da Pessoa com Deficiência do Ministério Público do
Estado de São Paulo. Especialista em direito difuso e coletivo pela ESMP- Mestre em Educação pela
UNESP. Home Page: www.pjpp.sp.gov.br
2
Estudante do 4º Ano do Curso de Direito das Faculdades Integradas “Antonio Eufrásio de Toledo”.
Estagiária do Ministério Público – agosto/2008.
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merece análise a que estabeleceu a isenção de impostos na aquisição de veículos
automotores, com destaque para a que dispõe sobre a Isenção do Imposto sobre Produtos
Industrializados – IPI. – Lei 8.989, de 24 de fevereiro de 1995 modificada pela Lei Federal
n. 10.690 de 16 de junho de 2003 (alterou a redação do inciso IV do artigo 1º) e no âmbito
estadual, a legislação que dispõe sobre a isenção do Imposto sobre a Circulação de
Mercadorias e Serviços – ICMS, prevista no artigo 19 do anexo I do Regulamento do
ICMS/2000 e pelos convênios 35/99, de 23 de julho de 1999 e 03/2007 de 19 de janeiro de
2007, celebrado do âmbito do CONFAZ, em face das disposições da Lei Complementar nº
24/75.
Pelos citados convênios e regulamentos, a isenção do ICMS, somente pode
ser obtida pela pessoa com deficiência física capaz de dirigir veículo automotor adaptado.
Esta é a questão a ser analisada neste trabalho, que busca refletir a respeito dos seguintes
pontos:
A legislação do ICMS é coerente com a proteção constitucional destinada à pessoa
com deficiência?
Qual a real finalidade do benefício fiscal? A inclusão da pessoa com deficiência ou
a isenção do imposto, visando compensar eventual ônus na aquisição e adaptação
do veículo adquirido?
Diante de toda esta situação como ficaria a inclusão social da pessoa com
deficiência? Apenas necessita de tal inclusão o deficiente que pode conduzir um
veículo adaptado?
Uma breve reflexão a respeito destes temas poderá proporcionar uma análise
mais adequada do benefício fiscal de isenção do ICMS para a aquisição de veículos por
pessoas com deficiência. A indagação principal que se pretende responder é a seguinte: A
concessão do favor fiscal destinado apenas e tão somente a um dos tipos de deficiência, ou
seja, a deficiência física, e à pessoa que pode conduzir veículo está adequada e em
harmonia com sistema legal que garante os direitos às pessoas com deficiência?
3
- Definição de Pessoa com Deficiência:
A legislação que regulamentou a isenção do ICMS refere-se apenas a pessoa
portadora de deficiência física. Contudo, o conceito de pessoa com deficiência é mais
amplo. A definição inicial da pessoa com deficiência foi dada pelo Decreto nº 3.298, de 20
de dezembro de 1999 (artigo 4º) que sofreu alterações pelo Decreto 5.296, de 02 de
dezembro de 2004 passando a pessoa com deficiência ser definida nos seguintes termos:
Art 5º (…)
§1º (…):
a) deficiência física: alteração completa ou parcial de um
ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o
comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma
de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia,
tetraparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou
ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com
deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades
estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho
das funções;
b) deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de
quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas
freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;
c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é
igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção
óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e
0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos
quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos
for igual ou menor que 60º, ou a ocorrência simultânea de
quaisquer das condições anteriores;
d) deficiência mental: funcionamento intelectual
significamente inferior à média, com manifestação antes dos
dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de
habilidades adaptativas, tais como: - comunicação;
- cuidado pessoal;
- habilidades sociais;
- utilização dos recursos da comunidade;
- saúde e segurança;
- habilidades acadêmicas;
- lazer; e
- trabalho;
e) deficiência múltipla – associação de duas ou mais
deficiências; (…)
Através da legislação verifica-se que não há somente a deficiência física,
mas visual, auditiva, mental, bem como há aquelas pessoas que sofrem com múltiplas
deficiências.
4
No ordenamento jurídico destinado às pessoas com deficiência há
especificidades em relação à determinada deficiência, como, por exemplo, a que trata do
cão-guia para o deficiente visual3
, ou a que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais
(LIBRAS) ao deficiente auditivo4
. Porém, não se vislumbra discriminação na concessão de
benefícios que visam à inclusão social do deficiente. Tal afirmativa é evidenciada quando
se analisa a lei que trata da reserva de vagas para o trabalho5
, ou da isenção no transporte
público6
ou da acessibilidade7
. Estas leis abrangem todas as deficiências e não apenas uma
categoria.
Diante deste quadro como analisar a legislação do ICMS que concede
isenção fiscal a apenas uma parcela das pessoas com deficiência, ou seja, àqueles
deficientes físicos que podem dirigir veículo automotor adaptado? - Da legislação do ICMS.
Conforme já asseverado, a isenção do ICMS à pessoa com deficiência, está
prevista no artigo 19 do anexo I do Regulamento do ICMS/2000 e nos convênios 35/99 e
03/2007, celebrado do âmbito do CONFAZ – Conselho Nacional de Política Fazendária,
em face das disposições da Lei Complementar nº 24/75. Destacam-se os principais pontos
de cada norma:
Anexo I do Regulamento do ICMS/2000:
Artigo 19 – (DEFICIENTE FÌSICO – VEÌCULO AUTOMOTOR)
– Saída interna ou interestadual de veículo com características
específicas para ser dirigido por motorista portador de deficiência
física, desde que a respectiva isenção seja amparada por isenção
sobre o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, nos termos
da legislação federal vigente (Convênio ICMS – 03/07).
Tal redação é reproduzida pelo convênio 03/07. Quanto ao convênio 35/99,
a redação é a seguinte:
3
Lei n. 11.126/05 regulamentada pelo Decreto n. 5.904/06.
4
Lei n. 10.436/02.
5 Decreto n. 3.298/99.
6
Lei n. 8.899/94.
7
Lei n.10.098/00.
5
Cláusula primeira. Ficam isentas do ICMS as saídas
internas e interestaduais de veículo automotor novo com até 127
HP de potencia bruta (SAE) que se destinar a uso exclusivo do
adquirente, paraplégico ou portador de deficiência física,
impossibilitado de utilizar o modelo comum, nos termos
estabelecidos na legislação estadual.
Por esta legislação, constata-se que a isenção do ICMS para aquisição de
veículo:
a) É um benefício dirigido à pessoa com deficiência física ou paraplégico (como se o
paraplégico não fosse um deficiente físico);
b) Que esta pessoa esteja impossibilitada de dirigir veículo de modelo comum;
c) O veículo deve ser de uso exclusivo do adquirente, vedando-se desta forma, que o
veículo seja dirigido por terceira pessoa, mesmo que em benefício do deficiente.
d) Não se contempla qualquer outra deficiência, a não ser a física.
Constata-se do Regulamento do ICMS que há referência a isenção do
veículo do IPI. Assim, para melhor análise da questão, mister se faz analisar a legislação
que trata da isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI. Inicialmente o
benefício fiscal também se destinava apenas aos portadores de deficiência física que não
pudessem dirigir modelo comum. Atualmente, a redação foi alterada para contemplar
outras deficiências. A redação anterior da Lei Federal n. 8.989 de 24 de fevereiro de 1995
era a seguinte:
Art. 1º Ficam isentos do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) os automóveis de passageiros de fabricação
nacional de até 127 HP de potência bruta (SAE), de no mínimo
quatro portas, inclusive a de acesso ao bagageiro, movidos a
combustíveis de origem renovável, quando adquiridos por:
(Redação dada pela Lei nº 10.182, de 12.2.2001)
IV – pessoas que, em razão de serem portadoras de
deficiência física, não possam dirigir automóveis comuns.
Porém, a Lei 10.690, de 16 de junho de 2003, modificou tal sistemática,
aniquilando com a discriminação que havia, não restringindo o beneficio apenas aos
portadores de deficiência física, mas a toda pessoa com deficiência, inclusive os autistas.
Atualmente, assim estabelece a Lei:
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Art. 1o Ficam isentos do Imposto Sobre Produtos
Industrializados – IPI os automóveis de passageiros de fabricação
nacional, equipados com motor de cilindrada não superior a dois
mil centímetros cúbicos, de no mínimo quatro portas inclusive a
de acesso ao bagageiro, movidos à combustíveis de origem
renovável ou sistema reversível de combustão, quando adquiridos
por: (Redação dada pela Lei nº 10.690, de 16.6.2003)
IV – pessoas portadoras de deficiência física, visual,
mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por
intermédio de seu representante legal; (Redação dada pela Lei
nº 10.690, de 16.6.2003)
§ 1o Para a concessão do benefício previsto no art. 1o é
considerada também pessoa portadora de deficiência física aquela
que apresenta alteração completa ou parcial de um ou mais
segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da
função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia,
paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia,
triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, amputação ou
ausência de membro, paralisia cerebral, membros com
deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades
estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho
de funções. (Incluído pela Lei nº 10.690, de 16.6.2003)
§ 2o Para a concessão do benefício previsto no art. 1o é
considerada pessoa portadora de deficiência visual aquela que
apresenta acuidade visual igual ou menor que 20/200 (tabela de
Snellen) no melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual
inferior a 20°, ou ocorrência simultânea de ambas as situações.
(Incluído pela Lei nº 10.690, de 16.6.2003)
§ 3o Na hipótese do inciso IV, os automóveis de passageiros
a que se refere o caput serão adquiridos diretamente pelas
pessoas que tenham plena capacidade jurídica e, no caso dos
interditos, pelos curadores. (Incluído pela Lei nº 10.690, de
16.6.2003)
§ 4o A Secretaria Especial dos Diretos Humanos da
Presidência da República, nos termos da legislação em vigor e o
Ministério da Saúde definirão em ato conjunto os conceitos de
pessoas portadoras de deficiência mental severa ou profunda, ou
autistas, e estabelecerão as normas e requisitos para emissão dos
laudos de avaliação delas. (Incluído pela Lei nº 10.690, de
16.6.2003)
§ 5o Os curadores respondem solidariamente quanto ao
imposto que deixar de ser pago, em razão da isenção de que trata
este artigo. (Incluído pela Lei nº 10.690, de 16.6.2003)
§ 6o A exigência para aquisição de automóveis equipados
com motor de cilindrada não superior a dois mil centímetros
cúbicos, de no mínimo quatro portas, inclusive a de acesso ao
bagageiro, movidos a combustíveis de origem renovável ou
sistema reversível de combustão não se aplica aos portadores de
deficiência de que trata o inciso IV do caput deste artigo.
(Redação dada pela Lei nº 10.754, de 31.10.2003)
Constata-se pela análise da legislação do ICMS e do IPI que anteriormente a
2003 ocorria uma igualdade dos beneficiários da isenção, posto que destinava o benefício
apenas a pessoa com deficiência física que pudesse dirigir veículo, olvidando-se a norma
7
daquelas pessoas que de igual modo, necessitavam de veículo automotor para seu uso, mas
que portavam outra deficiência que não a física. A partir de junho de 2003 a legislação
federal relativa ao IPI sofreu alteração substancial para contemplar outros tipos de
deficiência (pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou
profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de seu representante legal), nos
termos da Legislação Federal que definiu a pessoa com deficiência, fato que não ocorreu
com a legislação do ICMS que continuou a favorecer apenas o deficiente físico.
Tal situação mostra-se incoerente e discriminatória. Não há que se restringir
o benefício ao tipo de deficiência, no caso, goza da isenção apenas o deficiente físico. A
argumentação que a isenção tem por escopo a compensação de despesas a serem
suportadas em razão da adaptação do veículo não se mostra suficiente, posto que há
determinadas adaptações, como é o caso de direção hidráulica e câmbio automático, que já
estão incluídos, em alguns modelos como equipamentos de série.
Neste sentido, merecem destaque as considerações de Roberto Bolonhini
Júnior, na oportunidade em que analisou a isenção do ICMS, no estado de São Paulo, para
aquisição de veículos automotores:
Conforme já mencionado, os portadores de deficiência física
que não podem dirigir seus automóveis, não necessitando,
portanto, de adaptação no veículo, bem como os portadores de
deficiência visual não podem se beneficiar da isenção tributária
do ICMS nas operações que envolvam veículos automotores. É de
se lamentar tal situação, na medida em que esses portadores de
deficiência gozam também da isenção do IPI e, por uma questão
de critério legislativo, deveriam, também, usufruir do beneficio da
isenção do ICMS; a não isenção torna o tratamento fiscal
discrepante e discriminatório. (BOLONHINI JUNIOR, Roberto.
Portadores de Necessidades Especiais: as principais prerrogativas
e a legislação brasileira. – São Paulo: Arx, 2004. p. 117).
Diante desta situação, como justificar tratamento desigual às pessoas com
deficiências, frente à legislação federal e principalmente em razão dos princípios
constitucionais? A isenção do ICMS é discriminatória e dificulta a inclusão da pessoa com
deficiência? Esta isenção pode ser questionada judicialmente?
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Para a resposta a tais indagações, vale analisar a natureza jurídica da isenção
tributária e os princípios constitucionais aplicáveis às pessoas com deficiência.
- Natureza e Interpretação da Isenção – Isonomia Tributária – Princípio da
igualdade.
Este tema foi enfrentado com muita propriedade pelo Promotor de Justiça do
Estado de São Paulo, Valdemir Ferreira Pavarina, no parecer lançado em sede de Mandado
de Segurança nº 440/06, da 1ª Vara Cível da Comarca de Presidente Prudente – SP. Ao
discorrer sobre o tema, consignou:
A identificação da natureza jurídica da isenção tributária é
assunto não estreme de dúvidas e discussões, pois existem várias
teorias que procuram explicar esse fenômeno jurídico do direito
tributário.
Para a doutrina tradicional, a isenção tributária é a
dispensa legal do pagamento do tributo devido, ou que
normalmente seria devido. A isenção situa-se no campo da
incidência, mas ali, contudo, o contribuinte encontra-se
legalmente dispensado do pagamento do tributo. Portanto, o fato
em si é tributável, mas a lei, e somente ela, dispensa o pagamento
do tributo, excluindo-o do campo de incidência. Dessa forma, o
fato gerador ocorre normalmente, e a lei dispensa o pagamento.
Para essa corrente, a isenção situa-se no campo da
incidência. Assim, na isenção ocorre o fato imponível (fato gerador
in concreto), e a conseqüente obrigação tributária; apenas, o
pagamento do tributo é dispensado pela lei (CARRAZA, Roque
Antônio, Curso de Direito Constitucional Tributário, 16ª ed.,
Editora Malheiros, São Paulo, 2001, p. 704).
Insurgindo-se contra a corrente tradicional, outros
doutrinadores entendem que a isenção seria uma hipótese de
não-incidência tributária legalmente qualificada. Para tal
corrente, na isenção não há incidência da norma jurídica
tributária e, portanto, não ocorre o nascimento do tributo. Assim,
a lei tributária que concede uma isenção é, logicamente, anterior
à ocorrência do fato que, se ela não existisse, aí sim, seria
imponível.
Ao nosso sentir, a melhor compreensão que se deve dar ao
tema da isenção é a de que a lei isentiva confere uma nova
roupagem à norma jurídica tributária, que, assim, deixa de
alcançar certos fatos. O tributo não mais recairá sobre a situação
a que se refere tal lei. Trata-se de uma autêntica limitação legal
do âmbito de validade da norma jurídica tributária,
impedindo que o tributo nasça ou fazendo que ele surja de modo
mitigado.
Neste sentido, confira-se uma vez mais o magistério de
ROQUE ANTÔNIO CARRAZA, para quem “a lei isentiva, sendo
uma limitação legal do âmbito de validade da norma jurídica
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tributária, convive harmonicamente com a lei tributante,
formando uma única norma jurídica tributária. A lei isentiva
não mutila a norma tributante, apenas lhe empresta novas
funções” (CARRAZA, Roque Antônio, Curso de Direito
Constitucional Tributário, 16ª ed., Editora Malheiros, São Paulo,
2001, p. 704).
Ultrapassada esta fase, a seguinte refere-se à interpretação da norma isentiva
para abrangência de situações não consignadas no texto legal. Em outros termos, a lei que
isenta o ICMS à pessoa com deficiência física pode ser aplicada à pessoa com deficiência
múltipla, mental, auditiva ou visual. E mais, pode abarcar pessoa que não irá dirigir
diretamente o veículo, como no caso do menor deficiente, que gozaria do incentivo por
intermédio de terceira pessoa. Para a resposta a estas situações, a análise do tema passa
pela forma de interpretação da isenção e do princípio da isonomia tributária.
Prossegue, nesta análise citado Promotor de Justiça em seu parecer:
A questão está longe de ser pacífica. Para muitos, a norma
que outorga isenção fiscal não comporta interpretação ampliativa,
nem tampouco integração por equidade, haja vista que, por
instituir um privilégio, a isenção deve ser interpretada em sentido
estrito. Neste sentido, aliás, confira-se o disposto no artigo 111,
II, do Código Tributário Nacional. Por este ângulo, a isenção do
pagamento do ICMS na aquisição de automóveis adaptados por
parte de deficientes físicos, somente incidiria quando o adquirente
não pudesse dirigir veículos comuns. Logo, na hipótese vertente,
onde o impetrante é incapacitado para conduzir qualquer veículo,
adaptado ou não, seria indevida a pretendida isenção tributária.
Se não bastasse, também se tem entendido que embora não se
possa ser indiferente à afirmação de que o tratamento concedido
àquela pessoa com maior deficiência física acaba sendo mais
gravoso do que aquele concedido à pessoa cuja deficiência
alcança menor escala, não se deve desconsiderar que isto é
questão de ordem política, refletindo a orientação do legislador,
que não pode ser substituído pelo julgador, isto em respeito aos
demais preceitos do ordenamento jurídico pátrio. A opção por esta
tese, portanto, conduziria a denegação da segurança aqui
pleiteada.
Ao nosso sentir, contudo, para a justa e correta solução da
questão acima formulada e conseqüente desate da lide, a norma
de isenção fiscal do ICMS deve ser examinada mediante emprego
do método de interpretação lógico-sistemático, não bastando a
simples e isolada interpretação filológica ou literal. Neste sentido,
respeitado o entendimento antes exposto, quer nos parecer que
bastará cotejar tal norma com a Constituição Federal para se
perceber que a restrição consagrada pelo legislador paulista na
isenção do ICMS afronta não só o princípio da isonomia tributária
– conforme argumenta o impetrante -, mas, sobretudo, o princípio
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da proteção integral à dignidade da pessoa humana, ambos
expressamente consagrados na Carta da República.
Cediço que a Constituição Federal, no artigo 150, II, ao
dispor sobre o Sistema Tributário Nacional, veda aos entes
públicos da Federação, a instituição de tratamento desigual entre
contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida
qualquer distinção em razão da ocupação profissional ou da
função por eles exercida, independentemente da denominação
jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.
O princípio da igualdade é a projeção, na área tributária,
do princípio geral da isonomia jurídica, ou princípio de que todos
são iguais perante a lei. Apresenta-se aqui como garantia de
tratamento uniforme, pela entidade tributante, de quantos se
encontrem em condições iguais. Assim, não é dado ao legislador,
criar exceções ao tratamento igualitário, sob pena de mutilar a
Carta Magna, a ponto de torná-la inócua e destorcida.
O princípio da isonomia pode ser conceituado como aquele
que determina que todos devam receber o mesmo tratamento por
parte da lei, sendo proibidas as discriminações carentes de bom
senso e arbitrárias.
Com muita propriedade, o renomado tributarista Hugo de
Brito Machado assim ensina: “a isonomia, ou igualdade de todos
na lei e perante a lei, é um princípio universal de justiça. Na
verdade, um estudo profundo do assunto nos levará certamente à
conclusão de que o isonômico é o justo (MACHADO, Hugo de
Brito. Curso de direito tributário. 23 ed. São Paulo: Malheiros
Editores Ltda., 2003, p. 252.).
Aristóteles, citado por José Afonso da Silva, já consignava
que “toda democracia se funda no direito de igualdade, e tanto
mais pronunciada será a democracia quanto mais se avança na
igualdade” (SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros Editores
Ltda., 1999, p. 133.).
Nesta esteira, podemos dizer que ocorre a
inconstitucionalidade quando o legislador não atende aos limites
formais e/ou materiais determinados pelo constituinte, sendo que
as normas que ultrapassam tais limites são reputadas nulas,
inaplicáveis, sem validade, inconsistentes com a ordem jurídica
estabelecida, razão pela qual nos é permitido afirmar que aquilo
que fere um princípio constitucional, como o da isonomia, é uma
norma inválida.
Como acima enfatizado, o poder de tributar não é absoluto.
Se, por um lado, a Constituição Federal outorga competência
tributária aos entes públicos da federação, por outro, estabelece
também uma série de limitações ao poder de tributar, a exemplo
do princípio da isonomia tributária.
Assim, no campo tributário, os entes tributantes devem
tratar de forma igual os contribuintes que estejam em situação
equivalente e tratar de forma desigual os desiguais, na medida
das suas desigualdades. Não cabe, portanto, em matéria
tributária, quaisquer diferenciações no tratamento entre aqueles
que se encontram em situações idênticas.
Isso vale tanto para o elaborador da lei, que não pode
estabelecer hipóteses de incidência privilegiando um outro
segmento, como vale, também, para o aplicador da lei, pois este
deverá aplicar a lei a todos que tenham praticado atos ou se
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encontrem na mesma situação descrita na hipótese relativa à
incidência ou isenção de um dado tributo.
Celso Antônio Bandeira de Mello, dissertando sobre a
abrangência do princípio da isonomia, fornece importante e
translúcida lição:
“… a critério especificador escolhido pela lei a fim de
circunscrever os atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o
fator de discriminação – pode ser qualquer elemento radicado
neles, todavia, necessita, inarredavelmente guardar relação de
pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta. Em
outras palavras: A discriminação não pode ser gratuita ou
fortuita” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo
jurídico do princípio da igualdade. 3a. ed. São Paulo : Malheiros,
1993.).
O mestre lusitano, José Joaquim Gomes Canotilho, adverte
que hoje o princípio da igualdade condensa uma grande riqueza
de conteúdo, mas “a afirmação – ‘todos os cidadãos são iguais
perante a lei’ – significava, tradicionalmente, a exigência de
igualdade na aplicação do direito. Numa fórmula sintética,
sistematicamente repetida, escrevia Anschütz: ‘as leis devem ser
executadas sem olhar às pessoas’”. A verdadeira igualdade,
porém, não é aquela obtida pela aplicação da lei igualmente entre
os homens. Só há efetiva igualdade quando a própria lei observa,
na escolha dos critérios de discrímen, elementos que encontrem
fundamento em valores pertinentes ao objetivo da norma e
compatíveis com aqueles acolhidos pela Constituição. Trata-se,
assim, de haver uma igualdade na lei. “Ser igual perante a lei não
significa apenas aplicação igual da lei. A lei, ela própria, deve
tratar por igual todos os cidadãos. O princípio da igualdade
dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o à criação de um
direito igual para todos os cidadãos.” (Canotilho, José Joaquim
Gomes. Direito Constitucional, 6. ed. Coimbra : Almedina, 1993,
p. 563).
Com efeito, de que adianta a aplicação isonômica da lei, se
é a própria lei que distingue onde não poderia?!
No Brasil, apesar de o art. 5º, caput, da Constituição iniciar
por determinar uma igualdade perante a lei, o Constituinte
inseriu esse valor isonômico em diversos outros dispositivos, em
contextos que não deixam dúvidas quanto à obrigação de ser
observado na formulação da lei. É assim que o preâmbulo registra
ser o Estado brasileiro constituído sob o valor supremo da
igualdade, ao lado da liberdade, segurança, bem-estar,
desenvolvimento e justiça.
É, ademais, objetivo da nossa República a redução das
desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção de todos
sem preconceitos ou discriminações (art. 3º, III e IV). O próprio
caput do art. 5º, após determinar que “todos são iguais perante a
lei”, garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à igualdade. Não se trata aqui de apenas
ser tratado igualmente perante a norma, mas sim de um direito à
igualdade que precede à norma.
José Afonso da Silva adverte que, no Brasil, ao contrário do
estrangeiro, a doutrina e a jurisprudência já antes da
Constituição de 1988 não distinguiam a igualdade perante a lei
da igualdade na lei: “Entre nós, essa distinção é desnecessária,
porque a doutrina como a jurisprudência já firmaram, muito, a
orientação de que a igualdade perante a lei tem sentido que, no
12
estrangeiro, se dá à expressão igualdade na lei, ou seja: o
princípio tem como destinatários tanto o legislador como os
aplicadores da lei.” (Silva, José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 9. ed. São Paulo : Malheiros, 1994. p.
197).
O mestre paulista registra, ainda, na obra acima citada,
com espeque em Francisco Campos, que: “o legislador é o
destinatário principal do princípio, pois se ele pudesse criar
normas distintivas de pessoas, coisas ou fatos, que devessem ser
tratados com igualdade, o mandamento constitucional se tornaria
inteiramente inútil, concluindo que, nos sistemas constitucionais
do tipo do nosso não cabe dúvida quanto ao principal destinatário
do princípio constitucional de igualdade perante a lei. O
mandamento da Constituição se dirige particularmente ao
legislador e, efetivamente, somente ele poderá ser destinatário útil
de tal mandamento”.
Não há, pois, dúvidas sobre o alcance do princípio da
isonomia no Brasil: ele abrange tanto o processo de criação e
instituição das normas como o de aplicação. Ou, como prefere
Celso Antônio Bandeira de Mello: “… o alcance do princípio não se
restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas
que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a
isonomia”. (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo
jurídico do princípio da igualdade. 3a. ed. São Paulo : Malheiros,
1993, p. 9).
O próprio Supremo Tribunal Federal registra a existência
de conteúdo material no princípio, que, inclusive, implica a
inconstitucionalidade da norma infraconstitucional que o não
observe:
“O princípio da isonomia, que se reveste de autoaplicabilidade, não é – enquanto postulado fundamental de nossa
ordem político-jurídica – suscetível de regulamentação ou de
complementação normativa. Esse princípio – cuja observância
vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder
Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar
discriminações e de extinguir privilégios, sob duplo aspecto: (a) o
da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade
na lei – que opera numa fase de generalidade puramente abstrata
– constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de
sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação,
responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade
perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz
imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na
aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios
que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual
inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato
estatal por ele elaborado e produzido a eiva de
inconstitucionalidade”. (Mandado de Injunção n. 58 0 DF, Rel. p/
acórdão Ministro Celso de Mello, RTJ 134:1025).
Nesse sentido, aliás, já era a advertência de Rui Barbosa:
“A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar
desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam.
Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural,
é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios
da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a
iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade
13
flagrante, e não igualdade real”. (Barbosa, Rui. Oração aos moços. - ed. Rio de Janeiro : Ediouro, p. 55).
Do que acima se expôs, portanto, constata-se que o
princípio da igualdade impõe que, muitas vezes, se desiguale para
que se o observe, mas as situações substancialmente iguais
obrigam a um mesmo tratamento isonômico direto.
Cabe ainda indagar: qual deve ser o critério para a
distinção das situações e em que proporções devem ser
desigualados os tratamentos? Em outras palavras: o que é que
nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de forma
igualmente justa? Qual o critério de valoração para a relação de
igualdade?
Para Canotilho, existe observância da igualdade quando
indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente tratados
como desiguais (proibição do arbítrio). Por outras palavras: “o
princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de
tratamento surge como arbitrária. O arbítrio da desigualdade
seria condição necessária e suficiente da violação do princípio da
igualdade. Embora ainda hoje seja corrente a associação do
princípio da igualdade com o princípio da proibição do arbítrio,
este princípio, como simples princípio de limite, será também
insuficiente se não se transportar já, no seu enunciado
normativo-material, critérios possibilitadores da valoração das
relações de igualdade ou desigualdade. Esta a justificação de o
princípio da proibição do arbítrio andar sempre ligado a um
critério material objetivo. Este costuma ser sintetizado da forma
seguinte: existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica
quando a disciplina jurídica não se basear num: (I) fundamento
sério; (II) não tiver um sentido legítimo; (III) estabelecer
diferenciação jurídica sem fundamento razoável” (CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6. ed. Coimbra :
Almedina, 1993, p. 565).
Celso Antônio Bandeira de Melo, por sua vez, preleciona: “O
último elemento encarece a circunstância de que não é qualquer
diferença, conquanto real e logicamente explicável, que possui
suficiência para discriminações legais. Não basta, pois, poder-se
estabelecer racionalmente um nexo entre a diferença e um
conseqüente diferençado. Requer-se, demais disso, que o vínculo
demonstrável seja constitucionalmente pertinente. É dizer: as
vantagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser
conferidas prestigiando situações conotadas positivamente ou,
quando menos, compatíveis com os interesses acolhidos no
sistema constitucional. Reversamente, não podem ser colocadas
em desvantagens pela lei situações a que o sistema constitucional
empresta conotação positiva. Deveras, a lei não pode atribuir
efeitos valorativos, ou depreciativos, a critério especificador, em
desconformidade ou contradição com os valores transfundidos no
sistema constitucional ou nos padrões ético-sociais acolhidos
neste ordenamento. Neste sentido se há de entender a precitada
lição de Pimenta Bueno segundo a qual ‘qualquer especialidade
ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma
razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá
ser uma tirania’.”(BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio.
Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. São Paulo :
Malheiros, 1993, p. 42).
Assim, o ponto central para o tratamento desigual fundado
na isonomia é a adequada fundamentação do elemento de
14
discrímen, de modo a que seja compatível com o sistema
constitucional.
Impõe-se aí o manejo das desigualdades com atenção ao
princípio da proporcionalidade, assim definido pelo Tribunal
Constitucional alemão: “O meio empregado pelo legislador deve
ser adequado e necessário para alcançar o objetivo procurado. O
meio é adequado quando com seu auxílio se pode alcançar o
resultado desejado; é necessário, quando o legislador não poderia
ter escolhido um outro meio, igualmente eficaz, mas que não
limitasse ou limitasse da maneira menos sensível o direito
fundamental”. (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito
Constitucional, 6. ed. São Paulo : Malheiros, 1996, p. 372).
Finalmente, deve existir uma pertinência lógica entre o
elemento de discrímen e o bem jurídico que se pretende aplicado
igualmente aos destinatários da norma. Eis novamente as lições
de Bandeira de Mello:
“Então, no que atina ao ponto central da matéria abordada
procede afirmar é agredida a igualdade quando o fator diferencial
adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação
de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício
deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto.
Cabe, por isso mesmo, quanto a este aspecto, concluir: o
critério especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os
atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o fato de
discriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles;
todavia, necessita, inarredavelmente, guardar relação de
pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta. Em
outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou
fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o
tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe
serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não
guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos
jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio
da isonomia”. (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo
jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo : Malheiros,
1993, p. 38-39).
Pode-se concluir, portanto, que “a isonomia material é
assegurada por meio de critérios de desigualação fixados na
norma e que: (a) encontrem fundamento compatível com os
valores postos no sistema constitucional; (b) guardem pertinência
lógica entre as situações identificadas como desiguais e o bem
jurídico que se pretende aplicado isonomicamente aos
destinatários da norma; (c) sejam manejados razoável e
proporcionalmente em face das situações que se pretende
desigualar e do fim da desigualação. Ou seja, o tratamento
atribuído às situações não pode, a pretexto de igualar, acabar por
criar uma nova situação antiisonômica” (Marlon Alberto Weichert,
Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 37 n. 145 jan./mar.
2000).
Ao nosso entender, portanto, não há dúvida de que a
restrição da isenção fiscal do ICMS somente aos portadores
de deficiência física que necessitem de veículos adaptados
para dirigir, relegando ao esquecimento os portadores de
outras deficiências ainda mais graves, a exemplo do que
ocorre com o impetrante, está longe de ser um critério
legítimo de diferenciação, mas, sim, uma arbitrária e odiosa
forma de discriminação.
15
A conclusão lançada no citado parecer, sem dúvida alguma, tem inteira
procedência. O legislador garantindo o benefício fiscal apenas a pessoa com deficiência
física, ofendeu o princípio da igualdade tributária ao relegar para outro plano, pessoas com
outras deficiências que mereceriam, ainda mais, tal isenção. Um portador de LER se
beneficia da isenção que é negada a uma pessoa com paralisia cerebral que também
necessitaria de um veículo, mas dirigido por outra pessoa. A solução para este problema
implica na extensão do benefício às demais pessoas com deficiência.
Conclui-se em relação a este tópico que:
a) O artigo 111, II do Código Tributário Nacional não pode ser interpretado de forma
filológica ou literal, mas de maneira lógico-sistemática em face dos princípios
constitucionais tributários;
b) Implica esta interpretação em garantir a isonomia das pessoas com deficiência ao
benefício fiscal, não se limitando a pessoa com deficiência física;
c) O princípio da igualdade das pessoas com deficiências deve ocorrer não somente
perante a lei, mas na própria lei. As pessoas com deficiências devem gozar dos
mesmos benefícios fiscais.
Portanto, a análise da questão tributária contempla a pessoa com deficiência,
qualquer que seja ela, ao benefício da isenção do ICMS para aquisição de veículos, nos
moldes do estabelecido para o IPI. - Da dignidade da pessoa humana e da legalidade.
Não obstante estes fundamentos, deve ser analisada em relação ao tema, a
questão dos princípios da dignidade da pessoa humana e da legalidade. Estabelece a
Constituição Federal que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a
dignidade da pessoa humana (art. 1º). Este fundamento, amparado na Declaração Universal
dos Direitos do Homem, apresenta-se como o “rumo interpretativo de todo o sistema
16
normativo constitucional ou infraconstitucional” (Bolonhini Júnior, 2004: 42). O valor
principal a ser analisado e considerado no ordenamento jurídico é o homem, garantindo-lhe
uma dignidade que se pode traduzir numa existência digna.
Eliana Franco Neme, analisa a dignidade como corolário ao direito à vida,
como valor essencial para um Estado Democrático de Direito:
É o homem o senhor e destinatário de todos os
experimentos jurídicos. Direito e justiça existem e foram criados
pelo homem e para o homem, e a idéia de generalização da
espécie, apesar de ter sido um constante na história da
humanidade, é hoje uma realidade que deve ser buscada por
todos os Estados que se posicionam como Estados Democráticos
de Direito. Se for assim, a dignidade da pessoa humana é nesse
Estado Democrático valor fundamental a ser respeitado.
A idéia de dignidade do homem é um daqueles
pensamentos que, herdados dos movimentos religiosos cristãos
sobre a fraternidade e igualdade, dissociaram-se de suas origens
para consagrar uma idéia independente. A qualificação
anteriormente apresentada pelo termo, que em uma evolução
histórica acrescenta direitos humanos aos que não o tinham,
deixa de ter importância quando a dignidade passa a ser
encarada como uma qualidade essencial à vida humana. Não há
vida sem dignidade (…)”. (in: Araújo, Luiz Alberto David. 2006:
135/136).
Quando se analisa este fundamento em relação à pessoa com deficiência, o
que se almeja é a garantia de uma vida digna, de cidadania, de algumas prerrogativas para
que se garanta a sua inclusão social. A efetivação do principio da dignidade passa pela
extensão do benefício fiscal a todas as modalidades de deficiência.
O referido benefício fiscal poderia ser questionado se este princípio da
dignidade fosse efetivamente garantido em todos os setores da vida social. Uma sociedade
sem barreiras arquitetônicas e discriminatórias, com um sistema de saúde funcionando
adequadamente e com transporte acessível e de qualidade para todos, não comportaria
tratamento individualizado ou especializado para determinado segmento populacional,
como a isenção de imposto para aquisição de veículo pela pessoa com deficiência. No
entanto, a realidade mostra que tal solução é que garante este princípio da dignidade e da
liberdade de ir e vir. É que garante a sua inclusão social, mesmo que para poucos, pois a
grande maioria sequer tem recursos financeiros para a aquisição de veículos.
17
Em relação ao princípio da legalidade, que estaria sendo desrespeitado em
face do estabelecido no artigo 150, II do C. Tributário Nacional na eventualidade de se
estender a isenção fiscal para outras modalidades de deficiência, vale registrar que eventual
concessão do benefício deverá ser analisada em cada caso concreto. O Poder Judiciário,
chamado a apreciar esta questão, poderá declarar de forma incidental a
inconstitucionalidade da norma, para adequá-la aos princípios constitucionais que regem a
matéria. Com esta atuação não se vislumbra qualquer ofensa ao princípio da legalidade ou
mesmo de intromissão do Poder Judiciário em ato discricionário de outro poder estatal. Na
verdade, referido Poder estaria apenas exercendo uma de suas atribuições fundamentais
que é o controle da constitucionalidade das normas, dando efetividade que estabelece a
Constituição Federal. - Análise jurisprudencial.
A questão em análise já foi objeto de julgamento em nossos tribunais. As
que apontam para a negativa da isenção do ICMS às demais pessoas com deficiência,
baseia-se numa interpretação literal do Código Tributário Nacional e na finalidade da lei
que seria a de compensar parcialmente o deficiente físico do dispêndio extra com a
aquisição de veículo dotado de equipamento especial que lhe permita dirigi-lo.
Nesse sentido, aponta a decisão proferida pelo M.M. Juízo da 1ª Vara Cível
de Presidente Prudente no Mandado de Segurança nº 440/2006 que arrola algumas
decisões dos Tribunais, a seguir descrita:
A) Decisão negando o benefício fiscal.
…… A segurança deve ser denegada. (…) A lei tributária que rege o imposto
de circulação de mercadorias e serviços também se direcionou nesse sentido, ao editar a
norma que prevê a isenção do imposto sobre veículos automotores, com cilindrada
limitada, adaptada ao uso do deficiente físico. Tenho contudo que a lei – entenda-se o
legislador para a utilização da não-cobrança do imposto, embora fosse operação
normalmente tributável: deficiente físico, uso próprio e veículo com cilindrada limitada. Se
foi aquém do desejável, há que se entender, também, que buscava uma limitação na
isenção, por interesses orçamentários, visando direcionar a norma ao deficiente físico que
18
pudesse utilizar um veiculo, desde que adaptado. Não vislumbrou a lei, assim, somente o
entendimento de qualquer deficiente físico. O escopo claro da lei é de compensar
parcialmente o deficiente físico do dispêndio extra com a aquisição de veículo dotado de
equipamento especial que lhe permita dirigi-lo. E ponto final. Quiçá a matéria tenha sido
limitada porque quis o legislador evitar justamente casos como o dos autos onde o veículo
que se pretende adquirir serve não só ao deficiente, mas a qualquer um que dele queira
fazer uso, por não ser adaptado. Não foi intenção do legislador alcançar todos os
deficientes – por total falta de controle do posterior uso do veículo – mas somente aqueles
que pudessem dirigir um veículo, desde que adaptado. (…) Tenho pois que a questão do
alcance da norma não pode ser dada por interpretação extensiva, por ofensa a principio
básico em matéria tributária. Nesse sentido, aliás a jurisprudência, senão vejamos:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA QUE
CONCEDEU ISENÇÃO DE ICMS E IPVA. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO A SER
ADAPTADO PARA TRANSPORTE DE DEFICIENTE FÍSICO. PESSOA
ABSOLUTAMENTE INCAPAZ E SEM HABILITAÇÃO PARA DIRIGIR. VEÍCULO
QUE SERÁ CONDUZIDO POR SEUS FAMILIARES QUE NÃO POSSUEM
QUALQUER TIPO DE DEFICIÊ NCIA FÍSICA. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL.
AMPLIAÇÃO DO ALCANCE DA NORMA. IMPOSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO
LITERAL DA LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA. RECURSO PROVIDO. Se a Legislação
Estadual não prevê a isenção do ICMS e do IPVA para veículo adquirido por deficiente
físico para que outrem o dirija, ainda que para transportá-lo, não há como conceder medida
liminar em mandado de segurança por ausência de um dos pressupostos do art. 7º, inciso
II, da Lei 1.533/51, que é a fumaça do bom direito. Em matéria de isenção tributária não
cabe interpretação extensiva da lei nem a adoção analógica de lei federal para isentar o
contribuinte do pagamento de imposto estadual. Há declaração de voto.” (Agravo de
Instrumento n.2005.012351-6, 2ª câmara de Direito Público, TJSC, Florianópolis, Rel.
Des. Jaime Ramos, unânime, DJ de 26.10.2005). “AGRAVO DE INSTRUMENTO.
ISENÇÃO FISCAL. ICMS. PORTADORA DE NECESSIDADES ESPECIAIS. ARTIGO
38, CAPUT C/C I, DO REGULAMENTO DO ICMS. USO EXCLUSIVO DO
AUTOMÓVEL PELA IMPETRANTE. ADAPTAÇÕES NO VEÍCULO. REQUISITO
NÃO OBSERVADO. RECURSO PROVIDO. A isenção do ICMS incidente sobre a saída
de veículo destinado a portador de necessidades especiais reclama, dentre outros requisitos,
19
a existência de adaptações técnicas que lhe permitam utilizá-lo pessoalmente, porquanto a
legislação pertinente objetiva que o veículo seja conduzido exclusivamente pelo deficiente
físico.” (Agravo de Instrumento n.º 2005.017.198-8, 3ª Câmara de Direito Público, TJSC,
Florianópolis, Rel. Des. Pedro Manoel Abreu, unânime, DJ de 15.12.2005). Em que pese,
assim, entender e lamentar a situação aflitiva do paciente, não vislumbro como se dar
elastério a interpretação extensiva da norma tributária, por expressa vedação legal do
Código Tributário Nacional (art. 111, II), fato que esse que me faz refutar a acenada
inconstitucionalidade da norma limitadora da extensão do benefício da isenção fiscal e por
conseqüência, denegar a segurança. 3. Posto isso, JULGO IMPROCEDENTE o mandado
de segurança impetrado em benefício de M.P.A, representado por seu representante legal
contra ato praticado…”
B) Decisões favoráveis
As decisões a seguir citadas referem-se à extensão do IPI e da possibilidade
de aquisição do veículo para ser conduzido por terceira pessoa. Vale a citação, posto que
seus fundamentos também tem pertinência em relação a isenção do ICMS. destacando o
fim social da norma.
B.1.) O Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp
567873/MG, de que foi relator o eminente Ministro Luiz Fux, assim enfrentou a questão: - A ratio legis do benefício fiscal conferido aos deficientes físicos indicia
que indeferir requerimento formulado com o fim de adquirir um veículo para que outrem o
dirija, à míngua de condições de adaptá-lo, afronta ao fim colimado pelo legislador ao
aprovar a norma visando facilitar a locomoção de pessoa portadora de deficiência física,
possibilitando-lhe a aquisição de veículo para seu uso, independentemente do pagamento
do IPI. Consectariamente, revela-se inaceitável privar a Recorrente de um benefício legal
que coadjuva às suas razões finais a motivos humanitários, posto de sabença que os
deficientes físicos enfrentam inúmeras dificuldades, tais como o preconceito, a
discriminação, a comiseração exagerada, acesso ao mercado de trabalho, os obstáculos
físicos, constatações que conduziram à consagração das denominadas ações afirmativas,
como esta que se pretende empreender. - Consectário de um país que ostenta uma Carta Constitucional cujo
preâmbulo promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana,
20
promessas alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, é o de que
não se pode admitir sejam os direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de
deficiência, relegadas a um plano diverso daquele que o coloca na eminência das mais
belas garantias constitucionais. - Essa investida legislativa no âmbito das desigualdades físicas corporifica
uma das mais expressivas técnicas consubstanciadoras das denominadas “ações
afirmativas”. - Como de sabença, as ações afirmativas, fundadas em princípios
legitimadores dos interesses humanos reabre o diálogo pós-positivista entre o direito e a
ética, tornando efetivos os princípios constitucionais da isonomia e da proteção da
dignidade da pessoa humana, cânones que remontam às mais antigas declarações
Universais dos Direitos do Homem. Enfim, é a proteção da própria humanidade, centro que
hoje ilumina o universo jurídico, após a tão decantada e aplaudida mudança de paradigmas
do sistema jurídico, que abandonando a igualização dos direitos optou, axiologicamente,
pela busca da justiça e pela pessoalização das situações consagradas na ordem jurídica. - Deveras, negar à pessoa portadora de deficiência física a política fiscal
que consubstancia verdadeira positive action significa legitimar violenta afronta aos
princípios da isonomia e da defesa da dignidade da pessoa humana. - O Estado soberano assegura por si ou por seus delegatários cumprir o
postulado do acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. - Incumbe à legislação ordinária propiciar meios que atenuem a natural
carência de oportunidades dos deficientes físicos. - In casu, prepondera o princípio da proteção aos deficientes, ante os
desfavores sociais de que tais pessoas são vítimas. A fortiori, a problemática da integração
social dos deficientes deve ser examinada prioritariamente, máxime porque os interesses
sociais mais relevantes devem prevalecer sobre os interesses econômicos menos
significantes. - Imperioso destacar que a Lei nº 8.989/95, com a nova redação dada pela
Lei nº 10.754/2003, é mais abrangente e beneficia aquelas pessoas portadoras de
deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por
intermédio de seu representante legal, vedando-se, conferir-lhes na solução de seus pleitos,
21
interpretação deveras literal que conflite com as normas gerais, obstando a salutar
retroatividade da lei mais benéfica. (Lex Mitior)”.
B.2.) RECURSO ESPECIAL Nº 523.971 – MG (2003/0008527-7)
RECURSO ESPECIAL – ALÍNEA “A” – MANDADO DE SEGURANÇA –
IPI – AQUISIÇÃO DE VEÍCULO POR PORTADORES DE DEFICIÊNCIA FÍSICA –
ISENÇÃO – EXEGESE DO ARTIGO 1º, IV, DA LEI N. 8.989/95.
A redação original do artigo 1º, IV, da Lei n. 8.989/95 estabelecia que
estariam isentos do pagamento do IPI na aquisição de carros de passeio as “pessoas, que,
em razão de serem portadoras de deficiência, não podem dirigir automóveis comuns “.
Com base nesse dispositivo, ao argumento de que deve ser feita a
interpretação literal da lei tributária, conforme prevê o artigo 111 do CTN, não se
conforma a Fazenda Nacional com a concessão do benefício ao recorrido, portador de
atrofia muscular progressiva com diminuição acentuada de força nos membros inferiores e
superiores, o que lhe torna incapacitado para a condução de veículo comum ou adaptado.
A peculiaridade de que o veículo seja conduzido por terceira pessoa, que
não o portador de deficiência física, não constitui óbice razoável ao gozo da isenção
preconizada pela Lei n. n. 8.989/95, e, logicamente, não foi o intuito da lei. É de elementar
inferência que a aprovação do mencionado ato normativo visa à inclusão social dos
portadores de necessidades especiais, ou seja, facilitar-lhes a aquisição de veículo para sua
locomoção.
A fim de sanar qualquer dúvida quanto à feição humanitária do favor fiscal,
foi editada a Lei nº 10.690, de 10 de junho de 2003, que deu nova redação ao artigo 1º, IV,
da Lei n. 8.989/95: “ficam isentos do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI os
automóveis de passageiros de fabricação nacional” (…) “adquiridos por pessoas
portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas,
diretamente ou por intermédio de seu representante legal”. Recurso especial improvido.
VOTO DO MINISTRO FRANCIULLI NETTO (RELATOR):
Do acurado exame da legislação que rege a espécie, verifica-se que a
redação original do artigo 1º, IV, da Lei n. 8.989/95 estabelecia que estariam isentos do
22
pagamento do IPI na aquisição de carros de passeio as “pessoas, que, em razão de serem
portadoras de deficiência, não podem dirigir automóveis comuns “.
Com base nesse dispositivo, ao argumento de que deve ser feita a
interpretação literal da lei tributária, conforme prevê o artigo 111 do CTN, não se
conforma a Fazenda Nacional com a concessão do benefício ao recorrido, portador de
atrofia muscular progressiva, com diminuição acentuada de força nos membros inferiores e
superiores (cf. fl. 13), o que lhe incapacita para a condução até mesmo de veículo
adaptado.
Diante dessas circunstâncias, concluiu a Corte de origem que, caso seja
vedada a concessão da isenção ao recorrido, “a pessoa portadora de deficiência física mais
grave, e, portanto, mais merecedora da atenção estatal, estará alijada do favor fiscal, ao
passo que será por ele contemplado o portador de menor deficiência física, o que, com a
devida vênia, conduz à perplexidade, bem como não corresponde à mens legis, pois a lei
isentou da incidência do IPI os veículos adquiridos pelos portadores de deficiência física,
não para que eles pudessem dirigir veículo adaptado, mas sim para facilitar sua
aquisição, independentemente do fato de que o veículo viesse a ser conduzido pelo
deficiente físico ou não” (fl. 66).
Com efeito, a peculiaridade de que o veículo seja conduzido por terceira
pessoa que não o portador de deficiência física não constitui óbice razoável ao gozo da
isenção preconizada pela Lei n. n. 8.989/95, e, logicamente, não foi o intuito da lei.
Assim, é de elementar inferência que a aprovação do mencionado ato
normativo visa à inclusão social dos portadores de necessidades especiais, ou seja,
facilitar-lhes a aquisição de veículo para sua locomoção, ainda que conduzido por outra
pessoa.
A fim de sanar qualquer dúvida quanto à feição humanitária do favor fiscal,
foi editada a Lei nº 10.690, de 10 de junho de 2003, que deu nova redação ao artigo 1º, IV,
da Lei n. 8.989/95. Confira-se:
“Art. 1o Ficam isentos do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI os
automóveis de passageiros de fabricação nacional, equipados com motor de cilindrada
não superior a dois mil centímetros cúbicos, de no mínimo quatro portas inclusive a de
23
acesso ao bagageiro, movidos a combustíveis de origem renovável ou sistema reversível
de combustão, quando adquiridos por:
(…)
IV – pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou
profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de seu representante legal.”
Forçoso concluir, dessarte, que não merece reparo o entendimento esposado
no v. acórdão recorrido, razão pela qual nega-se provimento ao recurso especial. (REsp
523971 / MG ; RECURSO ESPECIAL 2003/0008527-7. Rel. Ministro Franciulli Netto.
Órgão Julgador – Segunda Turma. D. julg. 26/10/2004. Data da Publicação. DJ 28.03.2005
p. 239 RSTJ vol. 190 p. 235). - Considerações finais.
Diante de todo o exposto verifica-se que a questão é bastante interessante e
deve ser analisada de forma especial para não se cometer injustiça na interpretação do
benefício fiscal. Como análise final do tema, pode-se afirmar que:
a) A legislação do ICMS contraria a Constituição Federal ao limitar a isenção do
imposto à pessoa com deficiência física, ignorando as demais deficiências
devidamente especificadas na legislação.
b) A finalidade do benefício fiscal é a inclusão da pessoa com deficiência,
garantindo-lhe a sua dignidade, cidadania e liberdade de ir e vir. A isenção do
imposto não visa compensar eventual ônus na adaptação do veículo adquirido.
c) O artigo 111, II do Código Tributário Nacional não pode ser interpretado de
forma filológica ou literal, mas de maneira lógico-sistemática em face dos
princípios constitucionais tributários;
d) Implica esta interpretação em garantir a isonomia das pessoas com deficiência
ao benefício fiscal, não se limitando a pessoa com deficiência física;
24
e) O princípio da igualdade das pessoas com deficiências deve ocorrer não
somente perante a lei, mas na própria lei. As pessoas com deficiências devem
gozar dos mesmos benefícios fiscais.
f) Não há ofensa ao principio da legalidade na extensão da isenção para as outras
categorias de deficiência (assim definidas na lei) ou na condução do veículo por
terceira pessoa, sendo que cada situação deve ser analisada em concreto, em
processo judicial. Poder Judiciário deve ser chamado a apreciar esta questão,
declarando de forma incidental a inconstitucionalidade da norma, para adequála aos princípios constitucionais que regem a matéria.
Em face destas considerações, espera-se que os Juizes e Tribunais analisem
este tema com a atenção que merece, pois o desfecho destes processos implica na inclusão
social da pessoa com deficiência, garantindo-lhe a cidadania e dignidade preconizadas na
Constituição Federal.
25 - Bibliografia:
ARAÚJO, Luiz Alberto David. Defesa dos Direitos das pessoas portadoras de deficiência/
Luiz Alberto David Araújo coordenador. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
ARAÚJO, Marcelo José. Veículos adaptados para “deficientes”. Revista Juristas, João
Pessoa, a. III, n. 92, 19/09/2006. Disponível em:
http://www.juristas.com.br/mod_revistas.asp?ic=2910. Acesso em: 15/8/2007.
BOLONHINI JUNIOR, Roberto. Portadores de Necessidades Especiais: as principais
prerrogativas e a legislação brasileira. – São Paulo: Arx, 2004.
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. – 16ª ed. rev,
amp. e atual. – São Paulo: Malheiros Editores, 2001.
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