A idade penal em questão

A idade penal em questão

A IDADE PENAL EM QUESTÃO
Munir Cury1
Luiz Antônio Miguel Ferreira2
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados
aprovou a emenda constitucional que reduz a idade da responsabilidade penal de 18
para 16 anos, proposta até então engavetada por mais de 21 anos e que
periodicamente emergia para depois submergir na pauta parlamentar, de acordo
com os interesses políticos e o clamor popular. Desta feita, o texto deve ser
estudado por uma comissão especial da Casa e, se aprovado pelo menos por 60%
dos deputados, seguirá para o Senado para votação em duas sessões, onde, não
sofrendo alterações, será promulgado pelas duas Casas. Diante do aumento
significativo da violência praticada por adolescentes, da compreensível insegurança
e do pavor da população, da sensação de impunidade que angustia a todos nós, do
desejo de encontrar caminhos que aliviem o atual quadro de abalo em que vivemos,
a proposta ressurge como a grande e única solução que reconduza à mínima paz na
convivência social. Trata-se da solução apresentada para a redução da violência.
Da forma como apresentada a proposta e como se reproduz no imaginário
social, parece que o problema da violência se resume na ação do adolescente
infrator. Nesse caso, vale a advertência de Santo Agostinho: Curris Bene, sed viam
extra – você corre bem, mas está fora do caminho. Ou seja, todos nós queremos
reduzir a violência, mas a redução da idade para responsabilização penal do
adolescente não é o melhor caminho.
Em primeiro lugar, deve ser esclarecido que os adolescentes não ficam
impunes pelos atos violentos praticados. Segundo o Estatuto da Criança e do
Adolescente, os adolescentes que tenham praticado tais atos infracionais (crime ou
contravenção penal) estão sujeitos a medidas socioeducativas, dentre elas à medida
de internação, cuja característica é a privação de liberdade, tanto quanto a reclusão
ou detenção prevista para adultos. A medida de internação deve ser cumprida em

1
Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado de São Paulo. Advogado.
2
Promotor de Justiça da Infância e da Juventude do Ministério Público do Estado de São Paulo. Membro do
Conselho Consultivo da Fundação ABRINQ.
regime de contenção e segurança devendo os funcionários da entidade desenvolver
um trabalho sério e eficaz que possibilite a reeducação do infrator, promovendo a
sua necessária profissionalização, dificultando a possibilidade de fugas ou
indisciplinas que inviabilizem a proposta pedagógica e coloquem em risco a
segurança da comunidade.
Um importante aspecto que a sociedade deve conhecer e que os
oportunistas políticos não podem negar é que a legislação referente ao adolescente
infrator é mais rigorosa do que a destinada aos adultos. Embora a medida de
internação tenha a duração máxima de 3 anos, caso não comprovada a
ressocialização do infrator, poderá ele permanecer mais 3 anos em regime de
semiliberdade; e se persistir a dúvida quanto ao seu retorno à sociedade, ser-lhe-á
aplicada a medida de liberdade assistida por mais 3 anos. Totalizam, por
conseguinte, 9 anos as etapas de sujeição do infrator à intervenção do Estado. Um
adulto que pratique um roubo à mão armada, irá se submeter a uma pena de
reclusão em torno de 5 anos e 4 meses, observados os critérios do Código Penal.
Dada a atual sistemática da Lei de Execução Penal, o réu cumprirá preso apenas um
terço dessa pena, ou seja, mais ou menos 2 anos. Esse quadro comparativo dos 9
anos a que pode se submeter o adolescente infrator diante dos 2 anos do réu
adulto, desmistifica o argumento da impunidade do adolescente que
costumeiramente caracteriza o discurso político ou o pensamento do cidadão.
E mais. Quando o ECA estabelece o prazo de até 03 anos para o adolescente
cumprir uma medida socioeducativa de internação, este prazo refere-se ao regime
fechado, com privação total da liberdade. Estabelecendo um paralelo com uma
pessoa maior de idade, para que ele cumpra, em regime fechado, 06 meses, 1 ano, 2
anos e 3 anos de internação, equivaleria ter sido condenado por crime comum a 03,
06, 12 e 18 anos de reclusão. Assim, um adolescente que fica internado por 1 ano
equivale a uma condenação da pessoa maior de idade a 06 anos. Logo, este prazo
não é exíguo, posto que se refere exclusivamente ao período correspondente a
privação de liberdade.
Ainda a título de comparação entre o ato infracional praticado por
adolescente e o delito realizado por um adulto, pode-se tomar, por exemplo, o
ocorrido no processo do mensalão onde vários políticos foram condenados e
cumpriram reduzido prazo em regime fechado: José Dirceu: condenado a 7 anos e 11
meses – cumpriu 10 meses em regime fechado. Delúbio Soares: condenado a 6 anos
e 8 meses – cumpriu 8 meses e meio em regime fechado; João Paulo Cunha:
condenado a 6 anos e 4 meses – cumpriu 8 meses em regime fechado. José
Genoino: condenado a 4 anos e 8 meses – cumpriu 7 meses em regime fechado3
. Os
crimes cometidos, de natureza gravíssima, revelam recursos desviados de dinheiro
que não foi aplicado em proveito da comunidade, com investimentos em saúde e
educação (que poderia prevenir a ocorrência da violência envolvendo
adolescentes). Crimes mais graves que muitos praticados por adolescentes que se
encontram internados. No entanto, não ocorreu nenhum movimento social ou de
natureza política visando o aumento da pena para a prática de tais crimes. E, seus
autores, cumpriram penas curtas em regime fechado. Vale lembrar que um
adolescente que fica internado durante 10 meses equivale a condenação de 7 anos e
11 meses, o mesmo que José Dirceu cumpriu. Por que então a revolta apenas contra
os adolescentes?
Segundo dados oficiais fornecidos pelo Sinase/Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República e pelo Depen/ Ministério da Justiça, em 2013
encontravam-se privados de liberdade 23.221 adolescentes, sendo que 63% deles em
razão de roubo ou tráfico de drogas. Em ordem decrescente, são os estados mais
atingidos: São Paulo (8.497), Minas Gerais (1.411), Pernambuco (1.400), Ceará (1.080)
e Rio de Janeiro (989).
Observa-se ainda, entre os defensores da mudança legislativa, uma parcela
significativa de políticos integrantes do Poder Executivo. Trata-se de um verdadeiro
contrassenso. No Estado de São Paulo, com o maior número de adolescentes
infratores internados, não há mais vagas para internação. Adolescentes que
cometem delitos graves são colocados em liberdade por falta de vagas nas
unidades da Fundação Casa. Idêntica situação se verifica no Estado do Rio de
Janeiro, onde adolescentes do Educandário Santo Expedito tiveram suas decisões
revistas para serem colocados em liberdade devido a superlotação da unidade. Pois

3
Jornal Folha de São Paulo – 14 de março de 2014. Ano 94, n. 31.026.
bem. Com a redução da maioridade penal, estes adolescentes iriam para as
unidades prisionais que também padecem do mesmo mal, ou seja, encontram-se
superlotadas. O rigor do Estatuto da Criança e do Adolescente somente poderá ser
sentido pela comunidade, se a lei for integralmente cumprida, pois de nada adianta
decretar-se a internação de adolescentes se não há local para o cumprimento da
medida. É nesta hipótese que se verifica a verdadeira impunidade e a
responsabilidade pela sua ocorrência é dos gestores públicos. Assim para se
enfrentar o tema violência praticada por adolescente, não há necessidade de se
mudar a lei, mas de efetivamente cumpri-la, principalmente o responsável pela sua
execução, ou seja, o poder executivo. Como afirmou Gilberto Dimenstein (Cuidado
com a lei do menor esforço – 13/02/2007 – Brasília: UNICEF), o debate sobre aumento
das punições a criminosos juvenis, como a proposta de redução da maioridade
penal, sofre de um grave problema – o da lei do menor esforço. Esta lei atinge, em
cheio, os políticos, prontos para oferecer soluções fáceis e rápidas diante do clamor
popular. É mais fácil mandar quebrar o termômetro do que falar em enfrentar com
seriedade a infecção que gera a febre.
Mas o problema da redução da idade para responsabilização penal também
deve ser analisado sob o enfoque educativo. Não há como negar que há pontos de
identidade e de diversidade na aplicação da pena de reclusão ou de detenção ao
adulto e da internação ao adolescente. Em ambas as hipóteses, o Estado pune e
castiga porque houve uma conduta humana reprovável que atentou contra os
valores básicos da convivência social. Pune e castiga o adulto, nos casos graves,
privando de liberdade, em regime de contenção e segurança. Pune e castiga o
adolescente infrator, nos casos graves, também em regime de contenção e
segurança.
Porém, se até aqui existe identidade entre ambas, a distinção fundamental
da internação, como medida socioeducativa preconizada pelo Estado ao
adolescente infrator, é a sua finalidade pedagógica e ressocializadora, tendo em
vista a condição de personalidade em desenvolvimento do seu autor. É exatamente
em função dessa dinâmica interior peculiar da adolescência que o Estado deve
intervir com uma proposta educativa, considerando que “dedicados a atividades
lícitas e socialmente úteis, orientados rumo à sociedade e considerando a vida com
critérios humanistas, os jovens podem desenvolver atitudes não criminais.” (Diretrizes
das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil. Diretrizes de Riad,
princípio nº 1).
A opinião pública deve estar atenta à manipulação dos verdadeiros
bombardeamentos e afirmações políticas equivocadas que não enfrentam
corajosamente a difícil questão do abandono a que está relegada a nossa juventude.
A criança não nasce violenta e nem criminosa. Mas muitas dessas crianças nascem
sem a perspectiva de frequentarem uma creche ou pré-escola. É ai que se inicia a
construção social da desigualdade que acaba desaguando na violência que agora se
pretende enfrentar com a redução da idade. É muito mais fácil alterar a lei para
reduzir a idade e punir o adolescente do que ofertar educação em quantidade e
qualidade para todos.
Nesse grave momento que estamos vivendo no nosso país, somente o
enfrentamento sério, consciente, corajoso e honesto da questão da marginalidade
precoce pode conduzir a soluções possíveis. E elas existem. Se os governos, em
todas as suas esferas, observassem e aplicassem as medidas socioeducativas
previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente desde 1990, obedecendo
rigorosamente as suas determinações, as diretrizes educativas e os princípios éticos
preconizados pelo legislador, certamente não chegaríamos ao caos social em que
estamos mergulhados.
O clamor popular por segurança, diante da crescente onda de violência de
adolescentes, não pode legitimar, por si só, o rebaixamento da idade de
responsabilidade penal, mesmo porque, se ocorrer, haverá, sem dúvida, um
significativo aumento do quadro de violência na sociedade. Não será a redução da
idade da responsabilidade penal a solução para resolver a violência na nossa
sociedade. Nós não precisamos sequer de novas leis para a solução dessa grave
problema. O nosso país já tem legislação suficiente para o seu enfrentamento. Basta
que seja aplicada. Para isso, são poucos os homens comprometidos com o bem
comum.