O Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente como Política Pública Complementar

O Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente como Política Pública Complementar

Luiz Antonio Miguel Ferreira[1]

Luiz Gustavo Fabris Ferreira[2]

 

Como garantir a cidadania infanto-juvenil e a prioridade absoluta previstas na Constituição Federal (art. 227) em relação à criança e ao adolescente? Esta indagação nos direciona para várias ações e políticas públicas. Destacar-se-á, no entanto, uma ainda não completamente explorada, qual seja, a referente aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente.  

Quando se trata de criança e adolescente a ideia central é: a responsabilidade pelo futuro destas gerações é de todos, principalmente dos adultos, uma vez que as crianças são civilmente incapazes e suas vontades, são, geralmente, representadas pelos desejos e ações dos adultos. É fato, porém, que este futuro tem um custo, razão pela qual há necessidade de recursos para financiar projetos que alimentem uma expectativa de vida melhor para esta parcela da comunidade.

A Lei pensando nesta questão, de maneira inovadora, criou um fundo para catalisar os recursos que são destinados à criança e ao adolescente. Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu como política de atendimento a manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais, vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente (art. 88, IV, do ECA).

Com essa iniciativa, a Lei busca garantir uma autonomia financeira visando uma independência gradativa dos recursos oficiais. Não que estes não sejam bem vindos ou que o poder público não deva cumprir o seu papel. Muito pelo contrário. Independente das iniciativas financiadas pelos Fundos da Infância e da Juventude, sempre haverá a cobrança da responsabilidade do poder público quanto à efetivação dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. As receitas dos Fundos não excluem a obrigação do poder público de contemplar o orçamento com verbas para a garantia dos direitos fundamentais.

A responsabilidade, porém, é de todos. Poder público e comunidade em geral. A obrigação do poder público decorre de lei. Agora, quanto à ação da comunidade está embasada no que se denomina de cultura cívica, que envolve a ideia de pertencimento, engajamento e confiança nas instituições. Ideia de pertencimento implica no sentido de que a ação está direcionada para uma comunidade à qual se pertence. Ou seja, quando se destina o imposto de renda ao fundo da infância e da Juventude, faz-se um investimento na própria comunidade na qual se está incluído. Melhorando essa sociedade, também se melhora o meio social em que convive.

A outra questão refere-se ao engajamento e confiança nas instituições. Estamos muito descrentes das instituições. Porém, a cultura cívica requer essa confiança. A comunidade e as instituições, principalmente o Poder Judiciário, o Ministério Público e os Conselhos (Federal, estadual ou Municipal), devem procurar dar as respostas adequadas às demandas que envolvem crianças e adolescentes, no estado ou município. Percebe-se uma relação direta entre o aumento da arrecadação do fundo e a maior confiança nestas instituições.

Dessas ações resulta que não podemos ter um conceito de cidadania deformado ou deturpado, onde a “participação política é baseada na dependência e ambição pessoal, a coisa pública não diz respeito a cada cidadão, a corrupção é a norma e as leis são feitas para serem desobedecidas” (Ângela Randholpho Paiva). Devemos pensar em cidadania com essa cultura cívica que acaba por mudar a realidade social vivida, principalmente quando se refere à criança e ao adolescente. Devemos pensar a cidadania com a dimensão de uma solidariedade social, onde “o acordo social é pensado de forma impessoal e com o princípio fundante da dignidade dos indivíduos”.

Quando se busca a destinação de parte do imposto de renda ao Fundo da Infância e Adolescência, todos esses conceitos estão presentes. Resultam da ideia de cidadania ativa, cultura cívica, pertencimento coletivo, solidariedade social, dignidade da pessoa humana, fortalecimento da sociedade civil organizada e do exercício da democracia. Estes fatores confluem para uma verdadeira mudança de postura individualista e egoísta, na qual tem-se por substituído o “eu” pelo “nós”.

Este é o caminho da mudança social. Não basta esperar ações de terceiros ou do poder público. Há necessidade de agir. Assim, se podemos contribuir para esta mudança, por que não fazer?

 

Entendendo o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente:

 

A) O QUE É O FUNDO:

O Fundo Municipal dos Direitos da Criança ou do Adolescente, também conhecido como Fundo da Infância e Adolescência (FIA) constitui-se de recursos arrecadados para o atendimento de projetos voltados para ações complementares de promoção, proteção e defesa dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes. São recursos públicos mantidos em contas bancárias específicas. Essas contas têm a finalidade de receber repasses orçamentários e depósitos de doações efetuadas por pessoas físicas ou jurídicas. Cada Estado ou Município deve manter uma única conta/Fundo. O fundo se constitui de recursos que são geridos pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. Apesar de ser uma conta pública não integra o caixa do estado ou município, tanto que não é o chefe do executivo que delibera a respeito de sua aplicação. O Conselho é o órgão gestor do fundo. É o exemplo típico de democracia participativa. O fundo não tem qualquer vinculação com o Prefeito ou seu partido político.

 

B) QUEM DECIDE E FISCALIZA A APLICAÇÃO DO QUE É ARRECADADO:

O Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, composto por membros da sociedade e do poder público, de forma paritária, é que delibera sobre a aplicação dos recursos, sendo fiscalizados pelo Ministério Público, Poder Legislativo e Tribunal de Contas.

Os recursos devem ser destinados exclusivamente para execução das políticas públicas sociais para o amparo à criança e ao adolescente. São projetos que visam garantir os direitos fundamentais da criança e do adolescente como a vida, saúde, educação, lazer, profissionalização, convivência familiar e comunitária. Como os repasses destinados aos projetos se constituem de dinheiro público, resta necessária a prestação de contas que é fiscalizada pelo Tribunal de Contas.

 

C) COMO AJUDAR

A destinação de parte do imposto de renda ao fundo municipal dos direitos da criança e do adolescente não é favor. Não é doação. Não é caridade. Não é assistencialismo. Não é compaixão. É, em verdade, o exercício de um direito. É legal. É cidadania. É interessar-se pelos outros e fazer algo concreto ao próximo. É um exemplo sólido de solidariedade.

Podemos ajudar de várias maneiras. Fazendo a destinação direta de parte do imposto ao fundo; divulgando a campanha em nossos meios; inspirando um amigo a fazer a destinação; e se quisermos realmente fazer a diferença, mobilizando um grupo onde possui influência para adesão em massa à campanha (empresa ou órgão onde trabalhe, sindicato do qual faz parte, condomínio onde more, escola onde lecione, divulgando na mídia onde seja mandatário, nos escritórios de contabilidade, para que estes informem seus clientes etc.). Basta querer. Basta ser verdadeiramente cidadão.

Merece destaque as “doações”[3] das pessoas físicas e jurídicas. Como regra geral as pessoas físicas podem efetuar “doações” (destinação) de até 6% da sua receita tributável e, as jurídicas, até 1%. Tal destinação não acarretará nenhum ônus ao doador, visto que se refere à parte do valor do IR que deveria ser pago à Receita Federal. Assim, ao invés de destinar 100% do seu imposto para o Tesouro Nacional, a pessoa física destina 94% e o restante (6%) fica para o município ou estado.

Podem contribuir as empresas optantes pela tributação pelo Lucro Real. E, neste caso, devem observar os períodos de apuração do IR; empresas que fecham o período trimestralmente podem destinar a cada fechamento; e as empresas que fecham o período anualmente podem realizar a destinação ao final do ano.

A pessoa física tem duas oportunidades para fazer a destinação. A regra geral é destinar 6% do imposto sobre a renda apurado na declaração de ajuste anual, ou seja, recolher este valor até dezembro e, na entrega da declaração no ano seguinte, fazer o devido ajuste, descontando o valor pago. No entanto, a pessoa física pode optar pela doação de 3% do imposto apurado na declaração quando da sua entrega.

Ao destinar recursos a esses Fundos, os cidadãos e as empresas têm uma oportunidade de exercer participação social cidadã, pois decidem conscientemente que uma parte de seu IR será direcionada para ações definidas pela CF/88 como prioritárias, cuja execução e cujos resultados poderão acompanhar e fiscalizar. Há de se despertar esse civismo tributário dos contribuintes, eis que “o dever de pagar impostos transforma-se em ato de participação democrática no processo de execução de políticas públicas” (Orientações sobre Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente / Conselho Nacional do Ministério Público. – Brasília: CNMP, 2020, pág. 15).

 

D) AS RECEITAS DO FUNDO DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA:

De acordo com a Resolução n. 137, de 21 de janeiro de 2010 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, os fundos devem ter como receitas:

 

Art. 10 Os Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente devem ter como receitas:

I – recursos públicos que lhes forem destinados, consignados no Orçamento da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive mediante transferências do tipo “fundo a fundo” entre essas esferas de governo, desde que previsto na legislação específica;

II – doações de pessoas físicas e jurídicas, sejam elas de bens materiais, imóveis ou recursos financeiros;

III – destinações de receitas dedutíveis do Imposto de Renda, com incentivos fiscais, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente e demais legislações pertinentes.

IV – contribuições de governos estrangeiros e de organismos internacionais multilaterais;

V – o resultado de aplicações no mercado financeiro, observada a legislação pertinente; e

VI – recursos provenientes de multas, concursos de prognósticos, dentre outros que lhe forem destinados. (grifo nosso)

 

A destinação de parte do imposto de renda devido é uma das formas de composição do fundo, mas sem dúvida alguma, apresenta-se como relevante para a sua constituição. Ressalta-se que “o valor destinado ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança, respeitados os limites legais, é integralmente deduzido do imposto de renda apurado na Declaração anual”. Em outras palavras, quem fez a destinação de parte do Imposto de Renda ao Fundo e quem não fez irá pagar o mesmo imposto de renda a ser apurado quando da apresentação da Declaração anual.

 

Pode-se indagar qual a vantagem que tenho em fazer a destinação de parte do imposto de renda devido ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Com certo costume, a população em geral reclama que paga muitos impostos e que eles não são aplicados adequadamente. Com a destinação do seu imposto de renda ao fundo municipal, o dinheiro permanece em seu município e é aplicado em benefício das crianças e dos adolescentes que ali residem. A fiscalização pode ser exercida diretamente pelo interessado. E mais. O retorno é imediato, não demora mais de que alguns meses para adequação fiscal.

 

E) A CRIANÇA É PRIORIDADE ABSOLUTA.

É sabido que a Constituição Federal de 1988 estabelece no artigo 227 que a criança e o adolescente são prioridades absolutas. É o único artigo da lei que se refere à prioridade. Esta prioridade precisa sair do papel. Não basta a lei contemplar um plano ideal se a realidade está com ele desconexa e distante. O legal e o real devem caminhar juntos. Há a necessidade de se realizar ações que deem concretude a este comando legal, retirando, assim, crianças e adolescentes da miséria e do esquecimento. Deve-se, dessa maneira, garantir o desenvolvimento adequado, no aspecto educacional, social e psicológico. Para tanto, todos nós precisamos estar engajados nessa luta.

 

 

[1] Advogado e consultor. Promotor de Justiça aposentado do Estado de São Paulo. Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Membro do Conselho Consultivo da Fundação Abrinq e Sócio Efetivo do Todos pela Educação.  Sócio do Instituto Fabris Ferreira.

[2] Advogado. Sócio do Escritório Luiz Antonio Miguel Ferreira Advogados. Sócio do Instituto Fabris Ferreira. Novembro/2020.

[3] Que na verdade se constituem em destinação e não em doação, pois o contribuinte apenas está mudando a destinação de seu imposto de renda.