Reflexos da Pandemia na Pessoa com Transtorno de Espectro Autista – Uma Abordagem Psicológica e Jurídica

Reflexos da Pandemia na Pessoa com Transtorno de Espectro Autista – Uma Abordagem Psicológica e Jurídica

Luiz Antonio Miguel Ferreira[1]

Luiz Gustavo Fabris Ferreira[2]

Lygia Durigon[3]

 

 

I – NOTAS INTRODUTÓRIAS.

            A pandemia alterou a rotina de toda a sociedade, principalmente em face do isolamento/distanciamento social determinado, proporcionando o surgimento de novas atividades e hábitos. O cotidiano das famílias, do trabalho e, também, dos relacionamentos sociais, sofreu mudanças significativas, as quais, mesmo com o passar do tempo, possivelmente demandarão esforços para serem assimiladas.

            Pensar o “distanciamento social para a pessoa com deficiência, que já vive isolado, em função da falta de acessibilidade urbanística, arquitetônica, comunicacional, tecnológica e, também, devido à inclusão precária, ainda existente em muitos contextos sociais e escolares, é concluir que essa importante camada da população está hiper vulnerável frente a atual realidade” (Cury, Ferreira et al, 2020).

               O que se deve buscar para a pessoa com deficiência é a sua plena inclusão, uma vez que a convivência social é inerente ao ser humano e fundamental para o desenvolvimento de suas competências socioemocionais.

             Assim, a pandemia acabou representando mais uma barreira para plena inclusão da pessoa com deficiência, Transtorno de Espectro Autista (TEA) e altas habilidades. Mas foi além, causando reflexos diretos no seu desenvolvimento psicológico e, também, afetando a saúde e a educação, em face da limitação da oferta destes direitos.

           As ações do Poder Público, família e sociedade em geral, devem direcionar-se na busca pela diminuição da desigualdade que a pandemia escancarou. Pois, a Declaração Universal de Direitos Humanos deixa consignado logo no artigo primeiro que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, mas sabe-se que a vida nos vai tornando desiguais. Desiguais na medida em que o meio em que nascemos, o nosso gênero, a riqueza da nossa família, a nossa etnia, a nossa deficiência, e agora, a pandemia, causam-nos vantagens ou desvantagens pelas quais não somos responsáveis.

            Diante desta realidade, este artigo faz uma breve análise da situação vivenciada pela pessoa com Transtorno de Espectro Autista (TEA) em face da pandemia, sob aspectos legais e psicológicos. Pretende oferecer estratégias de fácil aplicação que possam colaborar com a promoção de comportamentos saudáveis e redução de potenciais problemas.

 

II – REFLEXOS LEGAIS DA PANDEMIA

           A Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, sendo que, logo no artigo 1º, deixou consignado: “a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais” (Art. 1º, § 2º). Com esta situação clara e definida, resta evidente que o Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146/2015) e o Estatuto da Criança e do Adolescente ( Lei n. 8.069/1990) tem inteira aplicação quando se trata de direitos da criança e do adolescente com TEA.

              E o artigo 3º da Lei n. 12.764/2012, deixa consignado quais são os direitos da pessoa com TEA. Diz a lei:

              Art. 3º São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista:

          I – a vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da personalidade, a segurança e o lazer;

             II – a proteção contra qualquer forma de abuso e exploração;

         III – o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo:

            a) o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo;

            b) o atendimento multiprofissional;

            c) a nutrição adequada e a terapia nutricional;

            d) os medicamentos;

            e) informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento;

            IV – o acesso:

            a) à educação e ao ensino profissionalizante;

            b) à moradia, inclusive à residência protegida;

            c) ao mercado de trabalho;

            d) à previdência social e à assistência social.

         Por outro lado, especifica o Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146/2015):

            Art. 4º Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.

 

            Art. 5º A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante.

 

            Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

            Em face da pandemia, verifica-se que muitos destes direitos especificados pela lei já estão sofrendo violações, as quais podem piorar, caso as medidas adequadas não sejam devidamente tomadas.

            O distanciamento social provocado pela COVID-19 pode gerar consequências ao indivíduo com TEA, como por exemplo:

  • VIOLAÇÃO A INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL:
    • Com a ocorrência de violência doméstica – maus tratos – abandono.
    • Pais que necessitam trabalhar terão que deixar o seu filho com pessoas, que muitas vezes, não sabem como lidar com a situação, podendo gerar conflitos ou violações.
  • SAÚDE:
    • Com a pandemia, muitos profissionais da área da saúde interromperam suas atividades, o que pode ter provocado a interrupção ou restrição de tratamento especializado.
    • Dificuldade de atendimento médico, em face da restrição de consultas.
  • EDUCAÇÃO
    • Evasão escolar: crianças ou adolescentes que não queiram mais retornar as atividades educacionais presenciais.
    • Acompanhamento escolar – Atendimento Educacional Especializado: em face da interrupção deste atendimento, a inclusão do aluno com TEA poderá encontrar dificuldades para acompanhar as atividades escolares.
    • Profissional de Apoio Escolar – muitas crianças ou adolescentes necessitam de profissional de apoio escolar, com o qual já se estabeleceu vínculo, mas que em razão da suspensão das aulas, não se sabe se voltarão ou não para estas atividades.

           Diante deste breve quadro de violação de direitos, há necessidade de se buscar a garantia e a efetividade destes, mesmo que em plena pandemia. Neste caso, deve-se acionar os órgãos de proteção, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, Conselho Tutelar e, também, os advogados para que se garanta os interesses e direitos da pessoa com TEA com as restrições impostas pela pandemia. Não se pretende violar as normas sanitárias impostas para todos, mas compatibilizá-las com as necessidades da pessoa com TEA. Pode-se até pensar em uma ação do Estado no sentido de flexibilizar de forma parcial o isolamento social para esta parcela da comunidade, com o devido esclarecimento à população, para que não sofram discriminação.

             Ressalta-se que neste campo de regulamentação sanitária, o poder público deve fixar normas específicas para a pessoa com TEA, o que não se verifica nas normatizações expedidas. A regulamentação em questão deve ser tratada de forma singular, diante das características próprias de tal população.

 

III – REFLEXOS PSICOLÓGICOS DA PANDEMIA

              O isolamento imposto por uma doença pandêmica tende a afetar a vida dos indivíduos de diferentes formas. A impossibilidade de se expor a situações prazerosas e agradáveis, parte da vida cotidiana de cada um, como encontrar pessoas, frequentar lugares, estudar, trabalhar ou passear, priva os indivíduos dos efeitos positivos gerados pelas interações ocorridas nestas circunstâncias.

           Paralelamente, o indivíduo precisa lidar com um contexto novo de alteração de rotina, que inclui maior vivência nos contextos doméstico e familiar, nem sempre fontes de estimulação positiva.

               O impacto dessas mudanças sobre a saúde mental dependerá diretamente da qualidade do ambiente em que se vive, dos estímulos positivos aos quais o indivíduo pode vir a ser exposto e do modo como as relações interpessoais se estabelecem no seu entorno. Efeitos adversos são vivenciados quando os indivíduos se encontram em ambientes estressores, com recursos escassos, sujeitos à violência de diferentes tipos, com permanência em espaços reduzidos e privação de atividades estimulantes ou prazerosas (Núcleo pelo Desenvolvimento da Primeira Infância, 2020).

           Além desses fatores, a incontrolabilidade frente a uma nova doença, da qual não se tem uma descrição detalhada sobre seu curso, duração e/ou tratamento, podem gerar sintomas compatíveis aos da ansiedade, afetando o bem estar dos indivíduos. Nas palavras de Borloti, Haydu et al.:

 

Os transtornos mentais mais prevalentes nessas circunstâncias e que requerem atenção dos profissionais da Psicologia são transtornos da ansiedade, com frequência o transtorno agudo do estresse, o transtorno do estresse póstraumático, e os transtornos de humor, frequentemente o transtorno depressivo maior (2020, p. 27).

               Portanto, as mudanças comportamentais geradas por alteração de fatores ambientais – uma nova doença, pandêmica, pouco conhecida e com tratamentos experimentais – e pela necessidade do isolamento social, afeta os indivíduos em uma direção semelhante: sintomas de tristeza, desmotivação, irritabilidade, alterações frequentes de humor, ansiedade, alterações nos padrões de sono e apetite (Polanscky, 2020).

               No entanto, a diferença no repertório comportamental de cada um, bem como na qualidade do ambiente e das relações individuais, serão fatores cruciais para determinar o nível do impacto sobre a vida e a saúde de cada pessoa. Neste contexto, crianças e adolescentes podem sentir maiores impactos emocionais negativos, pois são privados de situações de extrema relevância para o desenvolvimento saudável, como frequentar a escola, o acesso à merenda (muitas vezes, fonte principal de alimentação diária), o contato e a interação com pares e com figuras de afeto e as oportunidades de aprendizagem de diferentes conteúdos e habilidades. Na maioria dos casos, a retirada de tais situações não é substituída por outras de igual valor, ao invés, crianças e adolescentes são expostos a um contexto de falta de estímulos positivos, contato prolongado com telas ou eletrônicos e, ainda, podem vivenciar (ou serem espectadores de) casos de violência doméstica.

        Questões relacionadas ao desenvolvimento neurobiológico também se impõem. Crianças (e muitos adolescentes) apresentam maiores dificuldades em postergar a gratificação, uma vez que preferem recompensas imediatas para seu comportamento. O autocontrole, que permitiria ao indivíduo aguardar para acessar recompensas de maior magnitude, em detrimento de acessar recompensas de menor magnitude de forma imediata, desenvolve-se ao longo do processo de crescimento biológico e de aprendizagem. (Mischel, Ebbesen, Zeiss, 1972).

            Outro aspecto é que as crianças e jovens nem sempre conseguem compreender a dimensão do problema enfrentado pela sociedade e tendem a reagir às mudanças de forma mais intensa. Permanecer isolado para o bem comum depende de uma série de habilidades sociais, emocionais e cognitivas, que ainda estão em desenvolvimento. É difícil, por exemplo, para uma criança aceitar que não pode sair de casa, ir ao parque, à escola ou visitar um colega. É difícil aceitar que precisa permanecer em casa ou que não pode ficar junto ao seus pais, mesmo quando eles estão em casa, já que estes precisam trabalhar. É mais difícil ainda justificar todos esses comportamentos em nome de um motivo que eles não conseguem enxergar ou tocar.

           Indivíduos com deficiência, por sua vez, estão em posição ainda mais vulnerável. Nem sempre terão habilidades cognitivas para compreender o que ocorre em seu entorno, sobretudo diante de explicações abstratas. Além dos impactos já descritos, ainda perdem oportunidades cruciais para o seu desenvolvimento. A redução ou retirada de situações de ensino (tanto na escola quanto de intervenções específicas) têm efeito mais drástico para aqueles que dependem de estratégias especificamente delineadas para aprenderem.

              Em se tratando especificamente de indivíduos com TEA, as dificuldades inerentes ao quadro clínico, como restrição comportamental, alterações sensoriais, dificuldades de interação social e de comunicação (DSM-V), impõem questões adicionais. As mudanças de rotina, sobretudo aquelas abruptas e não sinalizadas, tendem a ser fonte de desorganização emocional. A retirada de uma série de atividades de rotina e de convívio social podem gerar reações comportamentais (incluindo emocionais) que se manifestam de diferentes formas: aumento de comportamentos-problema, como estereotipias, birras ou comportamentos de auto/heterolesão, explosões de raiva, maior irritabilidade, aumento de choros e menor tolerância à frustrações.

               Comportamentos considerados problema ocorrem por diversos motivos, que variam a cada circunstância. Podem ocorrer como forma de obtenção de atenção, a fim de comunicar desagrado, para regulação sensorial (ou prazer sensorial) ou para se esquivar de tarefas aversivas (Iwata, Dozier et al., 1982). Os indivíduos recorrem a estes comportamentos porque, muitas vezes, não sabem se manifestar de outras formas e porque, de modo geral, estes comportamentos geram reações imediatas das pessoas ao redor. Dificilmente, um adulto não se mobiliza imediatamente ao ver uma criança chorando ou gritando.

               A intensificação de comportamentos que podem ser prejudiciais aos indivíduos deve ser alvo de atenção e, uma sinalização para que os responsáveis promovam mudanças, de forma que as crianças/adolescentes sejam expostos a situações agradáveis e de prazer, que colaborem para reduzir o estresse. São nos momentos que agem de forma mais difícil, que os filhos precisam de maior acolhimento, afeto e atenção (Faber e Mazlish, 2003).

            Há diferentes estratégias recomendadas para amenizar comportamentos- problema ou para promover comportamentos com efeitos de prazer e de satisfação, que possam colaborar com o equilíbrio emocional. Estas serão tratadas no tópico a seguir.

 

IV – ESTRATÉGIAS GERAIS PARA ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA

         Sabe-se que é conveniente a manutenção de uma rotina regular, com atribuição de responsabilidades específicas às crianças e adolescentes com TEA. A manutenção dos horários de atividades de rotina, sobretudo de sono e alimentação, é imprescindível para o equilíbrio da saúde do organismo.  A adoção de uma nova rotina de atividades, eventos, responsabilidades e comportamentos também é importante para que os indivíduos se mantenham ativos, ocupados e sintam-se úteis.

          O uso de estratégias contendo pistas visuais (imagens) pode contribuir com o entendimento do indivíduo acerca de qual é a rotina em vigor e de quais comportamentos são esperados que ele apresente. Imagens que, por exemplo, sinalizem a necessidade do uso de máscaras, da lavagem das mãos, podem contribuir tanto para a compreensão da criança/adolescente quanto com o cumprimento da solicitação.

           Recursos como histórias sociais frequentemente são efetivos. Neste caso, utiliza-se uma sequência de imagens que ajudem o adulto a descrever uma situação, o comportamento a ser apresentado pela criança/adolescente e os possíveis efeitos gerados. Algo como: “O Coronavírus está na rua, por isso vamos vestir a máscara para irmos ao parque. Chegando lá, vamos brincar e você vai se divertir. Quando eu disser acabou, vamos voltar para a nossa casa, onde iremos tirar a máscara e tomar banho. Será um dia diferente e feliz”. Para cada trecho contado, o adulto mostrará uma imagem relativa que colabore para que a criança acompanhe a instrução falada.

         Esta alternativa permite que se apresente ao indivíduo o contexto em que o comportamento é esperado (Coronavírus e parque, por exemplo), o que pode ser bastante relevante considerando a dificuldade dos diagnosticados com TEA em flexibilizar. Caso o indivíduo aprender que não poderá sair de casa devido a uma doença, poderá apresentar dificuldades em sair de casa em qualquer circunstância, ainda que seja necessário ou urgente, por exemplo. Mas, se o adulto apresentar uma história que sinalize que a criança/adolescente poderá sair sempre que acompanhado de um adulto e vestindo máscara, ela poderá aceitar a situação com maior facilidade.

             Para a seleção do melhor recurso é importante que os responsáveis estejam atentos tanto à melhor forma de a criança/adolescente compreender algo quanto para identificar as suas preferências, que facilitem que ele demonstre interesse na informação. Há indivíduos que gostam de desenhos na televisão, outros de gibis, alguns preferem histórias escritas enquanto outros querem fazer os próprios desenhos. O formato é menos importante desde que faça sentido para o indivíduo com TEA.

             A inserção da criança/adolescente em atividades simples da rotina doméstica também poderá colaborar para que se ocupem e para que se percebam úteis. O que cada um poderá fazer dependerá de suas habilidades. Qualquer participação, ainda que mediada, deverá ser considerada. Nem sempre a tarefa será finalizada da forma ou no tempo esperados pelo adulto, entretanto, permitir ao indivíduo vivenciar o processo da realização de atividades domésticas lhe permite, ainda, desenvolver habilidades de vida diária, o que contribui com o desenvolvimento de autonomia e independência.

             Recomenda-se incentivar atividades simples que envolvam o estímulo de diferentes habilidades importantes para o desenvolvimento geral. Tarefas de coordenação motora fina, como desenhar, escrever, pintar, recortar, colar, bordar, entre outras, são úteis para que o indivíduo se ocupe ao mesmo tempo que aprende. Ainda, o exercício ou a movimentação física, que favoreçam a prática de habilidades de coordenação motora global, a ativação do sistema cardiorrespiratório e que libere neurotransmissores associados ao prazer, deve ser parte da rotina diária.

Há inúmeras evidências da profunda influência de exercícios físicos sobre a plasticidade cerebral e, consequentemente, o desenvolvimento cognitivo e emocional (Núcleo pelo Desenvolvimento da Primeira Infância, 2020, p.16).

         Expor diariamente o indivíduo a situações prazerosas e diferentes, ainda que pequenas, contribui para a manutenção da saúde mental. Novidades tendem a capturar a atenção dos indivíduos e a motivá-los. Não é preciso que seja algo necessariamente novo, mas uma forma diferente de apresentar algo já conhecido. Por exemplo, se brincar com água é prazeroso para a criança, pode-se separar um momento do dia em que brincar com um balde de água é permitido. Por outro lado, se a criança prefere assistir TV, pode-se separar um momento para que ela assista a um programa preferido. Oferecer um espaço diferente para brincar, como uma cabana com lençóis ou um papel diferente para colorir, são exemplos simples. Há inúmeras possibilidades que dependem diretamente das preferências e das habilidades de cada um. O fundamental é compreender que somos movidos por coisas que nos chamam a atenção e que podemos aprender em todas as circunstâncias, desde que sejamos levados a pensar e agir de forma nova/diferente.

        Como dito anteriormente, as alterações de comportamento da criança, com intensificação de comportamentos-problema sugere que algo não está bem e que é necessário reorganizar o ambiente para favorecer situações de maior prazer e que colaborem para reduzir o estresse.

      Perceber o que pode disparar comportamentos-problema é fundamental para que os responsáveis possam prevenir eventuais explosões comportamentais. Identificar gatilhos – situações estressoras – dá ao adulto chance de direcionar o comportamento da criança para algo que possa diverti-la ou acalmá-la. Aumentar a atenção positiva ao longo do dia, oferecer oportunidades da criança realizar atividades prazerosas, oferecer possibilidades da criança obter estimulação sensorial (tátil, de paladar, entre outras) são algumas estratégias que devem colaborar.

         Caso não seja possível prevenir uma situação de explosão comportamental, por exemplo, o adulto deverá colaborar para que a criança se acalme. Como recomendam Siegel e Bryson (2015), no momento da tempestade, o responsável deve atuar como um salva-vidas que retira a criança da água, antes de lhe dizer o que deveria ser feito. Mudar o foco de atenção da criança/adolescente para algo que lhe interessa poderá ajudar no processo de regulação emocional, mas provavelmente será ineficaz se o adulto não colaborar para que o indivíduo se acalme antes.

            A exposição prolongada e excessiva a telas e eletrônicos deve ser evitada a qualquer custo. Há diversos estudos que apontam para os efeitos adversos sobre a saúde física e emocional dos indivíduos, sobretudo de crianças e adolescentes. Entre estes efeitos negativos destacam-se: a alteração em padrões de sono e alimentação, a perda de interesse em outras atividades mais produtivas em termos de aprendizagem, além de problemas de vista. A Organização Mundial de Saúde define parâmetros claros sobre o tempo de exposição e registra que crianças de até 5 anos não devem ultrapassar mais de 60 minutos por dia diante de eletrônicos. Há diversos recursos eletrônicos para o ensino e prática de habilidades cognitivas para indivíduos com TEA e cuja utilização não é apenas benéfica como recomendada. Entretanto, este uso só será positivo se for monitorado, mediado e se houver o controle do tempo de acesso no dia-a-dia da criança.

           Por fim, conforme Polanscky (2020) alertou, o estresse emocional é um fator de risco para o desenvolvimento de transtornos mentais, mas que pode ser prevenido através de alterações ambientais. Neste contexto, os pais de crianças e adolescentes exercem um papel fundamental: o gerenciamento do próprio estresse para que possam colaborar com a diminuição do estresse de seus filhos.

        Os pais devem buscar alternativas para manejo do próprio estresse, seguindo as recomendações delineadas também para seus filhos, como exercício físico regular e realização de atividades que lhe sejam prazerosas.

          Sugere-se, ainda, encontrar espaços de escuta e acolhimento, a busca de profissionais especializados e, quando não for viável, o contato virtual com familiares em condições semelhantes, pode ser uma alternativa para minimizar o estresse.

IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS

          Muitas são as notícias dando conta da pandemia do COVID-19: evolução, regressão, vacina, mortos, leitos de UTI, escola etc. Enfim, são tantas e as mais variadas informações, as quais deixam qualquer pessoa com dúvidas sobre como agir ou mesmo se comportar.

            É certo, porém, que ninguém sabe o que vai ocorrer no futuro. O fato de ter uma vacina não garantirá que 100% da população estará segura. Da mesma forma, eventual retorno às aulas ou às atividades comerciais não impedirá um retrocesso com um novo fechamento e paralização das atividades.

             Assim, enquanto não há uma certeza do que irá ocorrer, o mais adequado é buscar conciliar a situação da criança com TEA com a realidade vivida. As incertezas proporcionadas pela pandemia obrigam o responsável a buscar uma nova rotina, com mais segurança. Modificar os horários de atividades externas ou até mesmo procurar um local em que não há muita frequência de pessoas.

         Conforme destacado ao longo do texto, torna-se adequado buscar um ambiente produtivo, prazeroso, acolhedor, envolvendo situações positivas que venham a suprir ou, pelo menos, minimizar o que a criança perdeu em razão da pandemia.

             Diante da observação de mudanças comportamentais das crianças e adolescentes, como maior irritação, sinais de medo, insegurança, mudanças de humor, insônia, mudanças de apetite, os pais devem criar oportunidades para que os filhos se sintam acolhidos, para que possam expressar suas dificuldades e devem criar mais oportunidades para que os filhos vivenciem situações agradáveis e prazerosas.

               A despeito das recomendações, faz-se necessário registrar o alerta feito por Brito/Almeida/Crenzel/Alves/ Lima/Abranches (2020, pag.  2):

Alterações nas funções sensoriais são muito comuns em autistas. Observa-se com frequência grande interesse pelos aspectos elementares dos objetos, como seu odor, sabor e textura. É comum vê-los passando as mãos em tudo, colocando utensílios não comestíveis na boca, “saboreando” superfícies, ou levando objetos ao nariz para sentir o cheiro, o que aumenta a possibilidade de contaminação. Os pais devem manter a residência limpa e os ambientes bem ventilados, evitando o compartilhamento de utensílios. As medidas com a higiene devem ser priorizadas

         A retomada de atividades em contexto aberto tende também a ser dificultada pelos motivos destacados por Brito e colaboradores. Deste modo, é fundamental que os responsáveis adotem estratégias que aumentem o engajamento da criança no cumprimento das medidas de segurança a higiene. Entretanto, é preciso ter ciência de que as pessoas com TEA poderão apresentar maior dificuldades no uso, ou mesmo, não tolerar as máscaras.  Aliás, em relação ao uso de máscaras, deve-se garantir que a pessoa com TEA não venha a ser submetida a uma situação degradante, flexibilizando o uso e respeitando as condições específicas do sujeito.

         Encontrar alternativas para que indivíduos com TEA retomem o convívio social, ainda que restrito, e com atividades de estimulação e aprendizagem, é fundamental para que esta população não sofra um ônus ainda maior, cujos efeitos negativos podem ser irreversíveis.

         Deve-se buscar a concretização da educação remota, inclusive, com o fornecimento de tutoria individual e atividades ligadas ao Atendimento Educacional Especializado (AEE), com a capacitação dos professores quanto a situação especial que a pandemia provoca na pessoa com TEA, principalmente com relação a estratégias de manejo comportamental.

              A manutenção do vínculo do professor com o aluno com TEA é fundamental e deve obedecer a mesma rotina e horário, antes estabelecidos. Aliás, segundo Brito/Almeida (2020, pag. 3) “os pais podem vestir a criança com o uniforme escolar, preparar a lancheira com a merenda, manter a pausa do recreio”, como parte da rotina escolar. Ainda na esfera educacional tratar o retorno das atividades com a presença de profissional de apoio escolar e a clareza de que “não existe correlação automática entre deficiência e risco”. A decisão sobre o retorno de alunos com TEA deve ser baseada na análise individual de cada caso, ou seja, é a sua saúde que deve ser avaliada para possível retorno, e não a deficiência.

         É necessário, ainda, garantir o tratamento adequado da saúde, em especial, com atividades nas áreas da psicologia, fonodiaulogia, terapeutas ocupacionais, psicomotricistas e fisioterapia, mantendo a continuidade dos atendimentos, mesmo diante da pandemia e do isolamento social. O atendimento remoto e sessões por videochamada podem auxiliar no tratamento.

           Todos estão experimentando novas formas de relacionamento e convivência, adaptando-se, dentro do possível, a esta realidade. Pensar na garantia da saúde física e mental do indivíduo com TEA em face deste contexto é o desafio posto, obrigando todos a lidarem com os efeitos de aprendizados interrompidos, lacunas na assistência, despreparo e estresse de pais, professores, cuidadores e da própria sociedade de forma geral.

            Todas as ações necessárias para se garantir os direitos fundamentais do indivíduo com TEA devem ser realizadas. Para tanto, Estado, Família e Sociedade devem agir para que a pandemia não interfira com maior intensidade na sua rotina. Deve-se garantir os atendimentos básicos necessários. Dentro dos parametros legais, deve-se garantir o pleno desenvolvimento da pessoa com TEA, mesmo ciente das limitações impostas pela pandemia. O que não se vislumbra como adequado, sob nenhuma hipótese, é ter a pandemia como justificativa para violação de direitos.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

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BRITO, Adriana Rocha, ALMEIDA, Roberto Santoro, CREZEL, Gabriela, ALVES, Ana Silvia Mendonça, LIMA, Rossano Cabral, ABRANCHES, Cecy Dunshee de. Autismo e os novos desafios impostos pela pandemia da COVID-19. Revista da Sociedade Brasileira de Pediatria, Grupo de Trabalho de Saúde Mental. Rio de Janeiro. 2020.

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SKINNER, Burrhus Frederic. Science and human behavior. New York: Macmillan. 1953.

[1] Advogado, sócio do Escritório Luiz Antonio Miguel Ferreira Advogados, e consultor. Promotor de Justiça aposentado do Estado de São Paulo. Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Autor do livro: O ECA e o professor. Membro do Conselho Consultivo da Fundação Abrinq e Sócio Efetivo do Todos pela Educação.  Sócio do Instituto Fabris Ferreira.

[2] Advogado. Sócio do Escritório Luiz Antonio Miguel Ferreira Advogados. Sócio do Instituto Fabris Ferreira.

[3] Psicóloga (CRP 06/84744). Mestre e Doutora em Análise do Comportamento, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenou o curso de Especialização em Análise do Comportamento Aplicada ao TEA no Centro Paradigma de Ciências e Tecnologia (SP), onde, atualmente, atua como orientadora de pesquisa e docente de cursos livres.

Agosto/2020